Será que a Irlanda do Norte vai conhecer uma paz duradoura? A notícia que ontem foi amplamente divulgada e comentada (a CNN deu-lhe um enorme relevo) fez com que a minha memória recuasse mais de 30 anos, quando tive o meu primeiro – e brutal – contacto com o terrorismo tal como o IRA o praticava.
Nos começos de 1973 fui designado pelo então ministro Veiga Simão como coordenador de um grupo de professores que devia participar numa conferência organizada pela OCDE, intitulada “School-based curriculum development”. De passagem, devo dizer que essa conferência teve grande importância na minha decisão de me tornar um estudioso do currículo, o que marcou a minha vida profissional. Ora essa conferência deveria realizar-se na Universidade do Ulster, em Coleraine, na Irlanda do Norte, que vivia nessa altura uma fase intensa de actividade do IRA, em especial em Londonderry, alvo frequente de atentados.
A marcação da conferência para o país foi interpretada como um sinal de confiança e de esperança em melhores dias.
Depois de duas reuniões preparatórias em Paris, constituiu-se um grupo de 6 professores que tomou parte na Conferência, uma das mais longas em que participei, pois durou quinze dias, no mês de Julho. Éramos mais de 200 representantes de muitos países, e a maior parte ficou alojada numa localidade bem ao Norte da Ilha, numa estância balnear chamada Portrush, (se tiver curiosidade, veja aqui) que fica relativamente perto do campus da Universidade.
Quando em Londres embarquei para Belfast, comecei a perceber o que era lidar com o terrorismo. Para além de um interrogatório minucioso para saber o que é que eu ia fazer a Belfast (aeroporto de chegada) a minha pasta foi criteriosamente escrutinada, a ponto de me terem aberto a bolsa do cachimbo (nessa altura fumava cachimbo) e um estojo de canetas… Mas isso não foi nada. Quando o avião aterrou em Belfast, surgiram de repente dois grupos de soldados, com as espingardas em guarda, que formaram duas filas no local onde ia descer a escada do avião (ainda não havia mangas em Belfast). Digo-vos que não foi uma recepção nada agradável… Para Portrush fomos de automóvel, e começou então uma paisagem que breve se tornou familiar: nas localidades, para impedir o estacionamento, havia nas bermas das ruas contentores metálicos; nas estradas, eram frequentes as barreiras para interpelar quem passava, tendo nós, inclusivamente, de mostrar os passaportes.
Na primeira sessão da Conferência, no auditório grande da Universidade, mesmo antes das boas vindas foi feito um anúncio que mais uma vez nos proporcionou alguns calafrios: se soasse o alarme, deveríamos todos deitar-nos no chão e proteger a cabeça…
Ao longo dos dias, talvez nos começássemos a habituar aos contentores, às inspecções frequentes, até porque em Portrush não houvera ainda atentados. Mas até ao fim houve dois momentos que conservo bem na memória. O primeiro: depois do primeiro fim-de-semana, um dos irlandeses presentes na conferência, regressado de Belfast, onde vivia, contava, quase sem sinais de emoção, que a sua secretária tinha siso morta no domingo apanhada numa explosão de um carrão armadilha (apesar dos contentores, ainda aconteciam casos destes). O segundo foi bem mais emocionante, e partilhei-o com alguém que não vejo (ao vivo) há muito tempo, que é hoje uma figura muito conhecida, em especial no seu Porto, o Hélder Pacheco. Estava integrado no grupo que foi a Coleraine, onde aliás teve uma brilhante intervenção mostrando o que estava a fazer com os seus alunos em termos de Educação Visual. Um dia, em conversa com um irlandês (cujo nome não recordo) que era director (“principal”) de uma escola secundária em Londonderry (não no centro da cidade, mas nos arredores), ele desafiou-nos: “Querem ver o que é a nossa vida? Venham comigo este fim de tarde que eu mostro-vos o que é viver com o terrorismo”. E fomos! Se a memória não me atraiçoa, foi também uma colega de um outro país, mas não sei precisar (pode ser que tenha escrito, devo tê-lo, mas os meus arquivos estão longe de estar bem organizados neste momento). Eu creio que agimos com bastante insensatez, como vão ver. De Portrush a Londonderry não se demorará mais de uma hora e meia, duas horas. Chegámos a casa do colega irlandês a tempo de um jantar leve, e depois partimos em direcção á cidade. A escola (e a casa) ficavam no alto, de onde se via a cidade, e ao longe nada faria prever o que se passava lá em baixo. Antes de chegar perto do centro, fomos mandados parar por soldados armados, mostrámos passaportes, a mala do carro foi vistoriada. A uma dada altura, não se podia ir mais além: ele estacionou o carro e convidou-nos s ir a pé. Não se via ninguém nas ruas. Seriam umas 21 horas, mas em Julho anoitece muito tarde naquela latitude. E de repente, numa esquina, ficamos na rua central da cidade. Era um espectáculo confrangedor. De um dos lados da rua os prédios – de três ou quatro andares – estavam completamente esventrados, só tinham as fachadas. Mas o mais assustador foi quando verificámos que um pequeno grupo de soldados, cosidos com as paredes, espingardas aperradas, avançavam em pequenas corridas. O nosso anfitrião explicava, calmamente, que deveria ter sido alguma denúncia de que haveria terroristas escondidos…Confesso que não me senti muito bem, e devo ter-me perguntado por que teria aceite o convite… Ainda demos mais umas voltas, e felizmente, nada aconteceu. Quando reentrei no carro senti um verdadeiro alívio…Recordo que no regresso (chegámos a Portrush bastante tarde, claro) a pequena comunidade lusa nos aguardava com alguma preocupação…
Nunca mais esqueci esse dia. E percebi, conjugando-o com o episódio da morte da secretária do colega nesse fim-de-semana, que os irlandeses se tinham, não direi acomodados, mas tornado relativamente insensíveis ao horror em que eram obrigados a viver. E essa ideia mais vincada ficou quando, no fim da conferência, houve uma festa onde os animadores foram capazes de fazer humor com a situação, para mim trágica, em que viviam.
E eu próprio, ao fim de quinze dias, sentia-me menos preocupado do que no princípio. O que não impediu que chegasse a Londres e me sentisse muito melhor.
Passaram 33 anos sobre estes factos e o IRA desiste da luta armada. Na história conturbada da Irlanda do Norte desde o princípio do século XX, será o 28 de Julho de 2005 uma data memorável?
5 comentários:
Belo texto. Obrigado pela partilha.
Nunca saí aqui do sossego do meu cantinho, mas vi muitos filmes e documentários sobre o IRA. Imagino que viver naquela situação deve ser horrível. E o pior (?) é que numa luta daquelas não há "os bons" e "os maus": todos têm as suas razões.
Mas não se compreende que no sec. XXI se lute e se mate por motivos religiosos, ainda mais com 2 religiões tolerantes e sem fanatismos. Espero que o 28/07/2005 fique na história pelos melhores motivos.
E obrigada por mais uma bela lição de história!
E agora embora um bocado fora do contexto, uma sugestão: tens de começar a escrever uns palavrões para ver se fazem do teu blog um livro! É que eu detesto ler no computador, as letras são pequeninas e eu estou a ficar pitosga (mas ainda não fui ao médico). Sabes que muitas vezes imprimo o que escreves para ler melhor e guardar? Qualquer dia faço eu o livro!
"2 religiões tolerantes e sem fanatismos. "
Ora ai esta uma afirmacao altamente discutivel.
Saltapocinhas, podes sempre opar por ter as letras da internet em tamanho maior.
opar -> optar
Luís:
Sempre foi esta a minha ideia inicial: recuperar as minhas memórias e dá-las a conhecer - sem curar muito de saber se eram ou não apreciadas, embora, naturalmente, fique contente se as apreciam.
Saltapocinhas:
Tenho uma boa colecção de palavrões que sou capaz de usar numa emergência mas nunca a sangue frio, e quando escrevo tenho um controlo razoável... Nem penso que isso tornasse mais publicável o que escrevo. Já pensei escrever um livro de memórias, sim, mas duvido que fosse um best-seller... Nem todos os meus potenciais leitores seriam como tu. Mas não ponho a ideia totalmente de parte. Quanto ao tamanho da letra, o Luís deu um bom conselho; se a aumento os textos ainda vão parecer maiores...
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