2005/06/03

Competir ou cooperar?


A propósito de um post do Miguel Pinto no Outroolhar, prometi reflectir sobre o problema da competitividade na escola. É um assunto que desde muito cedo me preocupou, primeiro como aluno, depois como professor, procurando encontrar respostas para situações que sempre considerei pouco educativas.

Eu sei que há um grande argumento para aceitar e até fomentar a competição nas escolas. Se na vida “real” (nas empresas, no desporto, na política) a regra é a competição, a escola deve preparar os alunos para enfrentar essa realidade. Não nego a evidência da competição no quotidiano, mas mesmo aí tem havido mudanças. Para muitas empresas, o perfil mais desejado para os seus quadros já não é o de pessoas competitivas mas sim o de pessoas que saibam colaborar com os outros. Não é também por acaso que se procuram bons gestores no sector das relações humanas, que saibam distinguir a competição saudável da competição doentia.

Ora na escola poderá haver lugar para uma competição saudável – nunca para a doentia. A escola é um espaço educativo onde os alunos devem aprender princípios de convivência solidária. O homem, como aliás outros animais, é um ser social que necessita dos outros homens; a sobrevivência de um homem isolado, ainda que teoricamente possível, constitui uma aberração. Por isso sempre combati o excesso de competição se o via despontar entre os meus alunos, e por isso muito cedo comecei a interessar-me pelos métodos de ensino-aprendizagem que valorizavam o trabalho em grupo.

Nos anos sessenta, foi a sociometria que me atraiu, depois a pedagogia de grupos e finalmente, já nos anos oitenta, a aprendizagem cooperativa, que constitui, a meus olhos, um conjunto de princípios e técnicas excelentes para uma escola que se queira desenvolver com qualidade quer sob o ponto de vista das aprendizagens curriculares quer no que se refere ao clima social.

Os princípios da aprendizagem cooperativa são simples: as crianças (ou adolescentes, ou adultos) devem aprender a trabalhar em grupo, considerando que para isso há cinco componentes relevantes: a interdependência positiva; a interacção face a face; a avaliação individual/ responsabilidade pessoal pela aprendizagem; o uso apropriado de skills interpessoais; e a avaliação do processo do trabalho do grupo. Insisto no primeiro ponto: é preciso aprender a trabalhar em grupo, porque não se nasce sabendo. Por isso tantos professores que experimentam o trabalho de grupo se desgostam cedo; sem regras aceites os grupos são fonte de problemas e não de bons resultados…

A aprendizagem cooperativa é dos tópicos mais investigados em educação, mostrando bons resultados. Não sendo uma panaceia para curar todos os males da escola, está na primeira linha dos que têm êxito.

É por isso que discordo da ideia de que a escola deva incentivar a competição “selvagem” do salve-se quem puder, aceitando, claro, a tal competição saudável que se pode estabelecer entre turmas em competições desportivas ou outras, mas nunca entre alunos na sua tarefa de aprendizagem.

2005/06/02

As crónicas na RUM (10)


Ontem foi dia mundial da criança. Não devia haver este dia, porque em todos os dias a criança devia ser lembrada, protegida, amada. Mas a praga dos “dias de” chegou à criança: que havemos de fazer? Aceitar, claro. Por isso, ontem, diversas organizações proporcionaram às crianças um dia com mais atenções, e eu só espero que as próprias famílias se tivessem sensibilizado e tivessem dado mais atenção às suas crianças. Tudo o que se faça por elas não é demais, mas, repito, não num dia, todos os dias!

Devo dizer que nem me lembrava que ontem seria o dia da criança, não fosse na véspera ter lido no jornal uma notícia que mo fez lembrar. Dizia a notícia que aquela criança indonésia que foi encontrada viva, muitos dias após o maremoto (vulgo, tsunami) de Dezembro do ano passado, de seu nome Martunis, envergando uma camisola da selecção nacional portuguesa, ia estar ontem – dia mundial da criança – em Lisboa, em contacto com outras crianças portuguesas de uma escola da capital, “sendo recebida” (palavras textuais da notícia) pelo presidente da Federação Portuguesa de futebol, um senhor muito conhecido chamado Gilberto Madail.

É evidente que, como todos ou quase todos nós, quando soube do caso, não deixei de me comover, mas sem perder a noção da casualidade da camisola da selecção estar a influenciar a nossa sensibilidade. Porque o que era importante na altura era o milagre da sobrevivência; se o Martunis tivesse uma camisola da selecção grega, porque deveria ser menor a nossa emoção? Tenho as maiores dúvidas que a camisola das quinas no corpo de uma criança humilde quisesse ser mais do que essa casualidade. Mas ela valeu-lhe uma série de benefícios (do qual esta viagem não será o mais importante). Ainda bem para ele. Porque no meio da tragédia teve sorte.
Não quero parecer muito crítico, talvez nem tenha razão em dizer estas palavras, mas causa-me uma certa perplexidade esta atenção particularizada a uma vítima de uma tragédia que tocou tanta gente. A generosidade com que os portugueses contribuíram para as vítimas, de uma maneira global, não só a entendo como a aplaudo; a que se concede a uma criança apenas porque envergava uma camisola da selecção nacional de futebol do nosso país, confesso, não a sinto como muito legítima.

Acredito que muitos não pensem como eu, e aceito que assim seja, claro. Mas estas crónicas devem reflectir a minha opinião, e por isso a dou a conhecer.

Bom, mudemos de tema: entrámos na última semana de aulas na Universidade, vamos agora ter uma pequena pausa e depois vêm os exames. Meus caros estudantes que me escutem, vamos aproveitar este pouco tempo para, nuns casos, apenas arrumar melhor os conhecimentos, noutros, fazer um esforço, maior ou menor, para tentar salvar o ano. É tempo de deixar de lado as festas e de se ter mais em atenção os livros e os apontamentos. A todos desejo bons êxitos.

Até para a semana.

2005/06/01

Uma nova escravatura


Ouvi e apesar de saber que é assim, quase me indignei. Porque podemos saber que certas coisas acontecem mas tentar pensar que não é bem assim, que há uma possibilidade de a realidade não ser tão cruel. Na TSF, logo de manhã, entrevista-se um jogador de futebol actualmente em Inglaterra, mas que se fala pode ser transferido para Portugal. O jogador em causa diz que não sabe, que tem mais dois ou três anos de contrato com o clube inglês. E remata (não a bola, mas o discurso): “ Eu nem sei se o (nome do clube) me quer vender!”.

Eu, que cresci nos tempos do amor à camisola, sei que hoje tudo é diferente, que também aqui o dinheiro fala mais alto. Mas ser o próprio jogador a dizer a verdade (que ele é neste momento uma mercadoria, sem vontade própria) é verdadeiramente revoltante.

O Alfa nº 135 (Lisboa, Santa Apolónia: 18 e 55)


Um dos benefícios do Euro 2004 para a cidade de Braga (e foram bastantes) foi o podermos passar a usufruir dos serviços do Alfa que, em menos de quatro horas, nos põe em Lisboa (e vice-versa). Claro que o tempo gasto para os 350 quilómetros é ainda exagerado, mas a comodidade é grande. Neste princípio de semana tive de vir a Lisboa, e uma vez mais preferi o comboio ao automóvel, e por isso estou de regresso a Braga no Alfa das 18 e 55… Anoitece, acabei de escrever a crónica para a Rádio Universitária que vou gravar amanhã, e decidi accionar a minha memória flutuante…

Na verdade, lembrei-me da minha primeira viagem de comboio de Lisboa ao Porto, num ano que situo entre 1942 ou 1943. Era uma criança, de facto, mas lembro com nitidez muitas das coisas que me aconteceram nessa semana em que, com o meu irmão, tive a alegria de fazer uma grande viagem… Tínhamos na altura um tio a viver no Porto, e, por alturas do S. João, fomos então passar uns dias à Invicta.

Havia então um comboio que se chamava pomposamente Flecha de Prata (por causa da cor das carruagens, porque quanto à velocidade de flecha, estávamos conversados!). A viagem demorou uma eternidade, creio que umas doze horas. Apesar de flecha, parava em tudo o que tinha um cais de embarque… Recordo-me dos pregões nas estações (que aliás duraram mais alguns anos): “Arrufadas de Coimbra e barricas de ovos moles!” ou “Água fresquinha!”…

É curioso como a memória guarda imagens tão longínquas no tempo. Claro que me lembro bem melhor da viagem de ida do que da de volta, estava tão excitado com a minha primeira grande viagem!

Bom, parei agora em Aveiro, já não se vendem na estação barricas de ovos moles, agora muito mais eficientemente publicitados (agradeço às Fábulas da Saltapocinhas a informação sobre o site…), e por isso termino esta evocação com uma lembrança da noite de S. João desse ano, nas Fontaínhas: ainda levei com um verdadeiro alho-porro na cabeça, porque nos anos quarenta a horrenda moda dos martelinhos não podia existir…