Contava-se de Lamego, quando lá estive, uma anedota que, sendo auto-flageladora, tinha graça. D. Afonso Henriques ressuscitara e andava pelas terras que havia conquistado, surpreendendo-se, claro está, com o que o seu guia lhe ia mostrando: estava tudo tão mudado! Até que, ao chegar a Lamego, exclamava: “Olha! Lamego!” A anedota era já, mesmo nesse tempo, injusta, ainda que se reconheça que a cidade se desenvolvia precariamente.
Sabia que iria estar em Lamego apenas o 1º período de aulas e queria consagrar esse tempo a trabalhar já para o estágio. Afinal, os meus dois anos de Magistério tinham-me levado a trabalhar na área da psicologia e por extensão na educação, deixando de lado a história e a filosofia, que seriam as áreas do meu estágio. Tinha um horário bastante bom, só aulas de manhã e apenas turmas de História, curso geral e complementar.
Instalei-me na Casa de Santa Zita, ao tempo porventura o único lugar onde um professor podia ficar, atendendo à relação preço/qualidade; tinha outra vantagem, ficava perto do Liceu, um imponente edifício, construído e inaugurado nos tempos da Ditadura Nacional (existia uma placa a recordar-nos disso mesmo). Belíssimas instalações: até piscina tinha! Apenas se haviam esquecido de instalar um sistema de aquecimento, numa região onde temperaturas a rondar os zero graus são frequentes, Lembro-me de nas aulas os alunos estarem de luvas!
Gostei muito de estar em Lamego. Aproveitei bem o tempo na minha preparação para o estágio, e apreciei a pacatez austera da cidade, as paisagens lindíssimas, a que o Outono emprestou ainda maior riqueza. Em Dezembro, já perto da minha saída, caiu um nevão espectacular, que numa manhã deixara a cidade branca. Já nos anos anteriores, em Viseu, tinha visto neve, e em quantidade, mas nunca como na altura. Comportei-me como um garoto, um pouco como acontecera uns anos antes, quando, ao que creio, caiu o último nevão a sério em Lisboa: foi em Fevereiro de 1954, andava eu no último ano do Liceu, em ensaios da nossa festa de despedida, e recordo-me de ter vagueado pela cidade, subindo ao alto da Graça para ter a visão deslumbrante de Lisboa branca. Também andei pelas ruas de Lamego, quase desertas, naquele silêncio que é tão branco como a neve, em que apenas os nossos passos se distinguem.
Recordo de Lamego as longas conversas com colegas (com quem nunca mais estive, à excepção de um que, depois, chegou a ser secretário de Estado da Educação nos anos 80, o Dr. António Pina), as idas depois de jantar ao café/pastelaria Dalila, então recentemente inaugurado, o excelente presunto e a magnífica bola – e, por que não, o bom vinho da região e os espumantes das caves Raposeira, que visitei algumas vezes…
Tenho depois disso voltado a Lamego, normalmente de passagem, mas, por duas ou três vezes, para passar uns dias, instalando-me no Hotel do Parque de Nossa Senhora dos Remédios (que não existia em 1963). A cidade desenvolveu-se muito e já não haverá hoje o perigo de a reincarnação de D. Afonso Henriques a reconhecer.