Numa visita a um
blog que à partida não supunha ter matéria de educação (apenas despertara, desportivamente, o meu interesse), encontrei um
post com o título que encima este que desafiava alguns bloguistas a abordarem este mesmo tema. Não me encontrava entre os desafiados mas logo ali me declarei interessado em responder ao desafio. Por duas ordens de razões, que passo a expor.
A primeira, porque a indisciplina na escola é na verdade um facto preocupante e merece ser analisada.
A segunda, porque o Autor do
post, ao terminar a sua mensagem com o texto seguinte, emulou os meus sentimentos de guerreiro…
“Desde que as Ciências da Educação tomaram de assalto o nosso sistema de ensino e a "pedagogice" assentou arraiais, a educação caiu em total descrédito com os resultados que todos nós conhecemos”.
Devo desde já dizer que vou primeiro abordar o tema da minha segunda ordem de razões, deixando para um segundo
post a primeira. Perceber-se-á porquê.
Acusações como as que foram feitas no
blog amigo têm sido desde há uns tempos recorrentes em alguns comentadores aos quais se costuma dar crédito – Carlos Fiolhais, António Barreto, Maria Filomena Mónica, e mais recentemente Maria de Fátima Bonifácio – e não ignoro que delas partilham outras pessoas (e o nosso confrade prova-o).
Considero serem muito injustas estas alegações. Em primeiro lugar, as ciências da educação não tomaram de assalto coisa nenhuma: limitaram-se a exercer o seu direito de definir princípios científicos, o que era completamente impossível nos tempos da ditadura. Até aos anos 70 do século passado existiram em Portugal excelentes pedagogos que nunca foram aceites devido ao sistema político vigente. Conheci-o bem: tornei-me adulto no “antigamente”, comecei a minha carreira no enquadramento de um regime que me pedia para declarar que estava integrado na ordem social estabelecida pela
Constituição de 1933 (o que fiz sem problemas porque de facto não planeava ser desordeiro…) e depois enveredei por ser activo na tentativa de contribuir para modificar o estado de um sistema educativo elitista e injusto. Para quem duvide, atente nestas palavras de Salazar numa entrevista a António Ferro: “Considero … mais urgente a constituição de vastas elites do que ensinar o povo a ler. É que os grandes problemas nacionais têm de ser resolvidos não pelo povo, mas pelas elites enquadrando as massas”.
Não nos podemos esquecer que falar em ciências sociais era, nessa altura, quase uma proibição: em 1970 ainda não tínhamos cursos de psicologia, sociologia ou educação! Tínhamos, por outro lado, uma vergonhosa taxa de analfabetos e pseudo-alfabetizados, taxas de escolaridade baixíssimas, e sobretudo tínhamos uma escola toda ela pensada para eliminar os menos capazes, à procura dos escóis.
Esta situação começou a mudar com Veiga Simão – que teve a coragem de falar em democratizar a educação. E teve a coragem de confiar em quem, de educação, não lia a cartilha de Salazar (Marcelo Caetano era mais aberto, mas sabe-se como foi travado pelos “ultras”). Em 1974 o estado da educação em Portugal já era diferente. É que as pessoas da educação já tinham começado a assaltar o sistema educativo… Insidiosamente, tinham conseguido influenciar uma lei de bases que esteve por um fio; tinham conseguido que as ciências sociais passassem a figurar no currículo dos chamados 3º e 4º anos experimentais (um dia lembrarei esse episódio); tinham passado a ir a grandes encontros internacionais onde a educação era considerada cientificamente.
Depois de 74, então, foi o fim… Escrevi, num dos primeiros posts deste blog (
A educação e o novo governo) que desde então até ao Ministro David Justino houve um certo consenso em relação à educação, o que, de acordo com as opiniões referidas há pouco, teria ocasionado o descalabro, o descrédito – e tudo por causa das “pedagogices”…
É tempo de reflectir e fazer uma análise cuidadosa. Consideremos os aspectos quantitativos. Neste últimos trinta anos, o parque escolar aumentou e melhorou exponencialmente. Há ainda excepções de instalações pouco próprias, mas são excepções. Aumentou também o número de alunos. A escolaridade obrigatória está em 9 anos – diga-se o mínimo dos mínimos – e o pré-escolar tem tido um apoio que o terá de levar à quase universalização. O número de professores aumentou igualmente – mais do que o necessário, sabe-se: há desemprego entre diplomados para ensinar. Os orçamentos para a educação são reconhecidamente dos mais generosos da Europa. E deve dizer-se, os nossos professores não se podem considerar mal pagos.
Consideremos agora os aspectos qualitativos. Há um princípio que diz: “A quantidade mata a qualidade”. É verdade. E a meus olhos reside aí um dos grandes problemas do nosso ensino. O crescimento não foi gradual, foi abrupto: o afluxo às escolas determinou que entre 1974 e 1979 (cinco anos) o número de professores aumentasse em mais de 60%, e mesmo assim foi necessário intensificar a formação de docentes. Ao mesmo tempo, procurava-se introduzir no nosso sistema normas pedagógicas (não pedagogices) compatíveis com a democracia: assim o ensino secundário unificado, a nova avaliação dos alunos, novas normas de gestão das escolas, e, necessariamente, a aproximação a correntes pedagógicas que existiam em países onde as ciências da educação existiam há anos e tinham sido acolhidas pelas maiores universidades – quer na Europa, quer nos Estados Unidos da América.
Foram boas, todas as medidas tomadas? Não foram. Em primeiro lugar, porque apesar de tudo as políticas educativas passam sempre o crivo da política em geral, e apesar dos consensos, houve sempre diferenças. Em segundo lugar, aplicou-se muitas vezes a parábola do vinho novo em odres velhos. Em terceiro lugar porque como em todas as outras matérias, mesmo as que se reclamam da maior centificidade, o êxito nem sempre é automático.
Não era possível continuar a ter elites porque o objectivo da educação passou a ser outro e não o que Salazar defendia. Educação para todos significa exactamente educação para todos e não apenas para os melhores. Alguns conseguirão a excelência (esses nem precisam de ter bons professores). Uma maioria ficar-se-á pela mediania.
Sei, por experiência, a diferença que há entre o que se legisla e o que se pratica: quase sempre o legislador é demasiadamente optimista, e o professor, em contrapartida, é quase sempre pessimista. Há, depois, o desfasamento entre a lógica de um poder que se quer manter centralizado mas utiliza uma linguagem a sugerir descentralização. Há as escolas muito grandes para garantirem uma acção unitária. E há, perdoe-me quem pensa que não é assim, a influência enorme que o ambiente sócio-económico-familiar tem no êxito escolar dos alunos. A acção do professor não pode ser a mesma numa escola de uma grande cidade ou numa vila do interior. Tudo aponta para que os currículos sejam diversificados, mas ao mesmo tempo pretende-se um controlo estatal…
As pessoas das ciências da educação sabem de tudo isto – e por isso não se alarmam com as acusações que lhes são feitas; elas sabem que se se aceitasse regressar ao passado não diminuiria o número de insucessos na escola, pelo contrário, aumentaria; sabem que medidas que são aplaudidas, como as da publicitação dos chamados “rankings” (tal como foram calculados) é mais nociva que benéfica; sabem que os exames nacionais contrariam a lógica do ensinar e aprender que promove o crescimento pessoal do jovem. Pelo contrário, as pessoas das ciências da educação têm consciência que os alunos nos nossos dias estão mais bem preparados do que os do passado, porque para elas não é o saber mais que conta, mas o saber melhor, o saber de algum modo útil.
Mas as pessoas das ciências da educação não estão contentes, claro. Sabem que muitas vezes são mal compreendidas nas suas posições. Por exemplo, é falso que defendam uma escola de facilidade: o que defendem é uma escola que não crie dificuldades desnecessárias. Fazer da escola um sítio agradável não é crime. Se se conseguir ensinar com alegria, para quê criar ambientes de prisão?
As pessoas das ciências da educação pensam que era possível fazer muito melhor se houvesse coragem de desfazer mitos – e um deles é o mito de um Ministério da Educação – e criar estruturas regionais e locais muito operacionais, capazes de ajuda efectiva às escolas e aos professores, assessoradas pelas escolas de formação da área (universitárias e politécnicas). Porque a pergunta que se tem de fazer é: “Por que é que existem, a par das coisas terríveis que o sistema educativo português tem, escolas como a da
Ponte? ou colégios como o colégio
Vizela?” E a resposta, dou-a a concluir: porque ambos gerem com muita independência e observando princípios de sã pedagogia, que implicam um corpo docente escolhido e motivado, profissional, em ambientes estimulantes porque não muito pesados e nos quais cada aluno é considerado como uma pessoa, com deveres mas também com direitos.
Tenho consciência que este texto é muito longo e que ficou muito por dizer. Mas o essencial ficou dito. Na segunda parte, irei então ao problema da indisciplina.