2005/04/02

Os primeiros anos do ensino básico

Não quero fugir a uma responsabilidade que se me torna evidente quando recebo uma mensagem do Abnóxio pedindo para que diga “em minha justiça” o que penso sobre o que se chama monodocência no ensino básico. Não gosto particularmente do termo monodocência, que aliás de há muito pode ser mitigada (a própria legislação refere a “monodocência coadjuvada”, que de facto existe em várias escolas). Penso que a discussão, conservando embora esse ponto de partida, pode centrar-se na dicotomia “professor generalista”/”professor especialista”.

Certamente se espera que seja claro e traga para a discussão não propriamente uma opinião mas mais uma posição alicerçada em algum pensamento já elaborado ao longo de uma vida em que a formação de professores tem ocupado um lugar central.

Vou começar por pôr de lado dois argumentos, um pró e outro contra.

O argumento pró não deixa de ser forte: historicamente, penso que em todo o mundo, o professor dos primeiros anos da escolaridade foi sempre generalista. Afasto-o porque sou dos que defendem a inovação e nada pior para a impedir do que venerar o “status quo”.

O argumento contra, invocado na mensagem que recebi do Ademar, apela para a “infelicidade de aturar, durante os quatro anos do 1º Ciclo do Ensino Básico, um(a) professor(a) absolutamente incompetente”. Também afasto este, porque em qualquer profissão não devemos, à partida, pôr o problema da incompetência; se um profissional se revelar incompetente têm de existir mecanismos que resolvam essa situação. Serei acusado de lirismo, mas desconfiar sistematicamente de quem exerce uma profissão torna impossível uma vida social saudável.
Passarei agora aos argumentos que considero deverem ser ponderados; uns são de natureza pedagógica, outros têm mais a ver com aspectos de ordem administrativa que os pedagogos não podem nem devem ignorar.
Vamos aos primeiros.

A criança que entra na escola básica, independentemente de ter frequentado ou não um estabelecimento de educação pré-escolar, vai vivenciar uma realidade nova que, não raras vezes, é percebida como ameaçadora. Por isso pode pensar-se que a existência de um professor único seja securizante para ela. A professora é a substituta da mãe, o professor, do pai; não é raro, nos primeiros tempos, o aluno dirigir-se ao professor enganando-se na designação, chamando-o “mãe” ou “pai”.

A entrada na escola significa que a criança vai continuar a aprender a realidade que a cerca. Continuar, porque ela está a aprender desde o berço. É bom que no momento em que a educação passa para a competência de profissionais ela seja encaminhada para aprendizagens com um significado – e por isso a base da educação nos primeiros tempos da escola deve ser a aprendizagem das linguagens, o saber ler, escrever, falar, interpretar a linguagem dos números, bem como interpretar a linguagem dos sons, das cores, dos movimentos. Um professor generalista faz aqui todo o sentido, para depois de algum tempo entregar a professores especializados a sequência daquelas aprendizagens que só com dificuldade ele domina. Por que digo que faz todo o sentido? Por duas razões. A primeira, porque o professor deve conhecer profundamente o aluno e uma convivência continuada favorece esse conhecimento e, portanto, dá ao professor a possibilidade de usar, como esse aluno, as estratégias adequadas para que ele aprenda melhor. A segunda porque, neste momento de iniciação, mais importante do que o saber profundo de disciplinas – e é evidente que ninguém pode dominar todos os saberes, das línguas à música passando pela matemática, ciências, história – é a transmissão de uma mensagem importante, a de que a realidade não é compartimentada em ciências várias, pelo que a compreensão da admirável unidade que a vida configura será mais bem apreendida se ela derivar de uma só pessoa. O professor deve ter o conhecimento básico das diferentes matérias que constituem o currículo do 1º ciclo, em especial deve conhecer as didácticas possíveis para as aprendizagens nucleares (como é citado pelo Ademar, a iniciação à leitura e à escrita, por exemplo). Concebo mal, na verdade, que uma criança até aos dez anos mude de professor para professor, embora esteja de acordo que em situações claramente favoráveis possa acontecer o chamado ensino em equipa, que em Portugal foi ensaiado sobretudo em escolas de área aberta, as chamadas P3 (como foi originariamente a Escola da Ponte).
E entronco aqui outro argumento, menos pedagógico e mais administrativo. A esmagadora maioria das escolas existentes em Portugal não tem instalações compatíveis com uma solução tipo “team teaching”, nem, muitas vezes, o número de alunos ideal para a concretizar. Também aqui a Escola da Ponte é um paradigma; quando a visitei pela primeira vez tinha pouco mais de 100 alunos. Se crescer muito, pode pôr em risco a sua qualidade (esta, claro, é uma opinião).

A acção deste professor generalista pode (e seria melhor dizer, deve, mas há casos em que tal não pode suceder) ser complementada em áreas para as quais não tenha, na verdade, competência. Enquanto que para o que eu poderia chamar o núcleo “duro” do currículo, o percurso escolar do professor, culminando na escola de formação que frequentou, deve ser suficiente, para áreas como a música ou a educação física só em casos excepcionais poderemos esperar que exista competência. Por isso a legislação prevê a tal “coadjuvação”.

Em síntese, porque já escrevi muito para a dimensão de um blog...

Não sou apologista de uma uniformidade de processos, embora compreenda que tenham de existir regras. Não sou pois contra o ensino em equipa no básico, mas tenho a maior reserva para uma especialização precoce junto das crianças. O professor especialista deve aparecer mais tarde (note-se que em alguns países o professor único, generalista, tem a seu cargo os primeiros seis anos e, se não erro, mesmo mais). Dado à situação actual das nossas escolas e dos nossos professores, não me parece que qualquer movimento no sentido de generalizar a extinção do professor generalista possa vir a ter qualquer êxito.

Ficou muito por dizer e há muito para criticar…

Fico esperando!

2005/04/01

As Crónicas na RUM



Para quem não sabe, RUM é a sigla para Rádio Universitária do Minho, uma das realizações da Associação Académica da minha Universidade. É uma estação de rádio para gente jovem, que se encontra em renovação depois de um período complicado. Entre 2000 e 2004 mantive na RUM uma colaboração que consistiu em fazer uma crónica semanal, não especificamente sobre educação mas pendendo para temas dessa índole, e participar ainda num programa semanal, intitulado “Caderno Diário”, esse sim, completamente voltado para a educação, no qual se entrevistavam personalidades que tinham relevância para o que se discutia. Nesse programa, da autoria da Elisabete Barbosa, eu era colaborador residente, juntamente com um representante da Associação Académica.

Com a reestruturação havida, fui convidado a regressar às minhas crónicas, e a primeira foi para o ar hoje, dia 1 de Abril (não é mentira!). Embora com um interesse porventura demasiadamente local, pensei que poderia deixar neste blog, semanalmente, os textos que leio na rádio. E assim vou fazer, de hoje em diante, às sextas-feiras.

CRÓNICA 1 (2005.04.01)

Volto ao convívio dos ouvintes da Rádio Universitária do Minho depois de uma ausência porventura mais longa do que teria pensado. E é sempre bom voltar quando do passado se têm boas lembranças. Habituara-me a escrever esta crónica semanal, transmitida às sextas-feiras, quase sempre versando um tema ligado à educação, por ser a minha área de ocupação profissional; e se reler o que escrevi e foi para o ar nesta antena entre 2000 e 2004 encontro pontos de referência que pautaram a evolução das coisas da educação e mesmo da vida do país, em geral, até ao verão de 2004.

A minha ausência coincide (involuntariamente, claro!) com os meses em que o país assistiu ao desenvolvimento dos actos do II governo saído da maioria que em 2002 ganhara as eleições. Por um lado, terei de dizer “ainda bem!”, porque certamente parte das crónicas que escreveria revelariam um estado de espírito algo deprimido, porque perante o que se passava na esfera da educação, como em tudo o mais, não seria possível qualquer optimismo – e como poderá recordar o ouvinte mais fiel, eu sou, inveteradamente, optimista.

Mas esse tempo passou, estamos a viver um novo ciclo e apesar das dificuldades a esperança renasceu. Portanto, eu regresso com a esperança – o que para mim é um bom sinal…

Este reencontro acontece, por acaso, no primeiro dia do mês de Abril. O tal dia das mentiras, aquele em que se convencionou ser aceitável que se enganem os outros, embora todos saibamos que a mentira faz parte do quotidiano da maior parte das pessoas, pelo que a liberdade que hoje é concedida para mentir até parece uma ironia…

Seria contudo desagradável que eu aproveitasse a primeira crónica desta nova série para pregar uma peta aos ouvintes, ainda que estivesse salvaguardado pela tradição. Não o vou fazer, portanto. Prefiro, como remate deste nosso reencontro, referir uma alteração importante que foi finalmente desbloqueada na nossa Universidade, embora já de há muito tempo preparada. Trata-se da integração plena da Escola de Enfermagem Calouste Gulbenkian na Universidade do Minho, o que aconteceu depois de terem sido alterados os estatutos da Universidade para que pudesse acomodar uma escola de ensino superior politécnico. Neste momento, as alunas e alunos de enfermagem pertencem à Universidade, regendo-se pelos mesmos princípios (com excepção dos que, por força da lei, se lhes aplicam estritamente). O mesmo se passa, naturalmente, com os docentes.

A integração da Escola de Enfermagem na UM representa, na altura em que o curso de Medicina está quase a formar a primeira vaga dos seus licenciados, uma mais-valia que importa realçar, porque prevejo, no futuro, que as duas escolas (Ciências da Saúde e Enfermagem) potenciem sinergias importantes numa área que queremos seja de excelência – e tudo indica que vai ser.

Quis assim, com uma referência positiva à nossa vida académica, recomeçar estas crónicas semanais.

Foi um prazer regressar. Até para a semana.

2005/03/30

Ainda sobre o ensino superior politécnico


Na sexta-feira Santa tive ocasião de ler um artigo que veio publicado no Diário de Notícias, que espero possa ler aqui. Não identifiquei logo o seu autor, Armando Vieira, mas ontem uma pesquisa rápida na Internet deu-mo a conhecer: é um ainda jovem professor coordenador do Instituto Superior de Engenharia do Porto, doutorado em Física Teórica pela Universidade de Coimbra, e também um blogger (visite as suas Coisitas). Gostei do artigo, porque nele encontrei muitas verdades que, como o Autor diz, é necessário reconhecer que existem. Tenho contudo um ponto de discordância porque sinceramente não me apercebo que as coisas tenham acontecido como Armando Vieira as coloca.

Depois de traçar um quadro lúcido sobre a origem dos politécnicos (excelente que considere as Escolas Industriais “antepassados dignos”) e de referir a sua finalidade – formação de mão-de-obra qualificada – não deixando de acentuar que na criação dos politécnicos imperou muitas vezes um “regionalismo folclórico”, começa um parágrafo escrevendo:

“…Passada a euforia inicial, os politécnicos cedo se viram vítimas de uma concorrência feroz das universidades com uma liberdade de acção muito condicionada pelos poderosos lobies destas últimas”.

Antes de prosseguir, uma nota cautelar: na esfera do ensino superior politécnico, estou muito mais familiarizado com o que diz respeito às Escolas Superiores de Educação do que em relação a outras escolas; mas mesmo assim fui membro da Comissão Instaladora do Instituto Politécnico de Faro, que tinha inicialmente uma Escola de Tecnologia e Gestão e acompanhei o seu crescimento. De qualquer modo, Armando Vieira pode ter algum motivo para escrever o que escreveu, mas, a frio, falar de concorrência feroz das universidades não me faz sentido. E isto porque desde o início se definiu, a meu ver bem – e na linha dos tais dignos antepassados, os Institutos Industriais e Comerciais, que os politécnicos iriam formar técnicos intermédios, preenchendo uma lacuna que era cada vez mais evidente na indústria. O grau concebido para esse fim foi o bacharelato (recuperando uma palavra com história), reservando-se a licenciatura para as universidades. Quando hoje se reclama para os politécnicos a capacidade de “fazer” licenciaturas, mestrados e conferir o grau de doutor, eu terei de dizer que existe aqui uma perversão da ideia inicial. E note-se, o Autor do artigo reconhece-o, quando diz que “os politécnicos nunca foram capazes de definir uma estratégia coerente criando um modelo de ensino superior alternativo ao universitário com dignidade e sem complexos”. Exacto! Foi mesmo isso que aconteceu. O que o ensino superior politécnico, a partir de um certo momento, revelou, foi uma enorme falta de criatividade, incapaz de aceitar que os seus objectivos não eram os mesmos dos do ensino universitário, porque os seus cursos tinham de ter um carácter específico, visando colmatar as exigências de emprego em áreas que não se confundiam com aquelas para que são direccionados os cursos universitários. Repare-se que eu não defendo que os politécnicos não façam investigação, que não tenham no seu corpo docente titulares de doutoramentos, que se “apaguem” perante as universidades. Defendo ainda que deve haver, em termos de carreira docente, uma equiparação que não gere os actuais absurdos (na entrada e no termo das carreiras, note-se). O que não posso defender é que os politécnicos queiram ser universidades – e infelizmente, essa aspiração é patente, sobretudo nas instituições do interior do país. Pelo que li no artigo de Armando Vieira, e com excepção daquela frase (que pode ter uma explicação) ele pensa exactamente como eu e a sua ideia de politécnico deriva da fonte límpida dos que, nos anos 80, deram corpo às primeiras instituições.
Temos de aproveitar o momento de mudança que Bolonha favorece para evitar cair em erros que outros já cometeram neste latente conflito universidade-politécnico. É preciso preservar a dualidade de formações, definindo com clareza princípios e fins.

2005/03/29

O tal mar revolto a que me referia ontem...


... aqui está ele. Não é impressionante?


Notas soltas de um interregno


Num só dia, tinha para ler três jornais diários, um semanário e duas revistas – e, maravilha, podia fazê-lo, sem precisar de me justificar pelo tempo “perdido”. Retive das leituras que o país vive em equilíbrio instável entre o acreditar que vamos finalmente “dar o salto” e o pensar que nos nossos genes o fracasso está indelevelmente marcado. Como sou optimista, prefiro pensar que vamos mesmo dar o salto. Mas…

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Tenho um enorme prazer em conduzir. Desde pequenino que tive atracção pelos automóveis, a ponto de sonhar com participar em provas desportivas (sonho que perdi por boas razões). Hoje sou apenas um condutor que aprecia as viagens longas (conduzir na cidade não é a mesma coisa…). Saí de Braga no dia 24 vigorando um código de estrada, regressei a 28 com nova lei. Como muitos outros, interrogo-me acerca da teimosia em manter a velocidade máxima nas auto-estradas em 120 km/hora. Com o parque automóvel que temos, não se justifica de todo essa determinação, que em algumas situações eu direi mesmo que é impossível manter sem gerar filas intermináveis (e perigosas) ou constantes ultrapassagens (que são igualmente perigosas).

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Na viagem de regresso notei, satisfeito, que na A1 já figurava o limite inferior de velocidade permitido (50 km/hora). Isto é, a disposição do código entrara em vigor e de imediato o sinal fora alterado. Já o mesmo não aconteceu na área da A1 não concessionada à Brisa: aí, continuava a figurar o limite de 40km/hora. Como não li o novo código todo, pergunto se será mesmo assim ou se será consequência da normal incúria dos serviços públicos? (Custa-me dizer isto, mas é, normalmente, verdade…)

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Finalmente, choveu bem, provavelmente ainda não o suficiente, mas de qualquer modo choveu. Penso que toda a gente perdoou o relativo incómodo que possa ter sido a chuva em período com feriados e ficou satisfeita com a dádiva. Vamos lá ver se se cumpre o provérbio e temos águas mil em Abril!

2005/03/28

Regresso

Cumpri o que a mim próprio prometera: nestes últimos dias, tendo como enquadramento um mar revolto e ocasionais chuvadas, passei os dias a ler, a ver alguma televisão, e a rever paisagens que me são familiares, evocadoras de muitos dias da minha vida. Gosto do mar, embora não aprecie muito a praia em tempo de veraneio. Na minha infância convivi com o Tejo, de que via um largo braço da janela de minha casa; até à idade adulta, em Lisboa, o rio quase mar acompanhou muitos passeios à sua beira. Mais tarde, em dois anos passados no Faial, sempre que de manhã abria a janela, lá estava o canal de múltiplas facetas – calmo, crispado, alteroso – e ao longe, quando se via, o Pico; e em outro ano, na Madeira, de novo o mar todos os dias… Recordo as viagens longas – uma delas, nove dias! – que fiz de Lisboa para o Faial no “Carvalho Araújo”, viagens que me deram o estatuto de não muito mau marinheiro. Depois, nos anos em que estive em Faro, do 10º andar no qual habitava espraiava a vista desde Olhão à Praia de Faro… Mas a vida de praia, a areia entre os dedos dos pés, o muito sol, o muito calor, nunca me cativaram. Pode parecer estranho, mas entre um banho no mar e umas braçadas numa piscina, prefiro a piscina.
Desde garoto que visito, regularmente, a zona que vai das Azenhas do Mar à Praia Grande. Foi aí que passei estes dias. À beira de uma piscina sem água mas constantemente agredida pelas ondas de um mar revolto. Foi bom ter chovido, o mar estar "bravo", e ter descansado.

Agradeço a todos os amigos e amigas que me desejaram boa Páscoa.

Amanhã, depois de pôr em ordem as coisas que estes dias deixaram desordenadas, continuarei.