Não quero fugir a uma responsabilidade que se me torna evidente quando recebo uma mensagem do Abnóxio pedindo para que diga “em minha justiça” o que penso sobre o que se chama monodocência no ensino básico. Não gosto particularmente do termo monodocência, que aliás de há muito pode ser mitigada (a própria legislação refere a “monodocência coadjuvada”, que de facto existe em várias escolas). Penso que a discussão, conservando embora esse ponto de partida, pode centrar-se na dicotomia “professor generalista”/”professor especialista”.
Certamente se espera que seja claro e traga para a discussão não propriamente uma opinião mas mais uma posição alicerçada em algum pensamento já elaborado ao longo de uma vida em que a formação de professores tem ocupado um lugar central.
Vou começar por pôr de lado dois argumentos, um pró e outro contra.
O argumento pró não deixa de ser forte: historicamente, penso que em todo o mundo, o professor dos primeiros anos da escolaridade foi sempre generalista. Afasto-o porque sou dos que defendem a inovação e nada pior para a impedir do que venerar o “status quo”.
O argumento contra, invocado na mensagem que recebi do Ademar, apela para a “infelicidade de aturar, durante os quatro anos do 1º Ciclo do Ensino Básico, um(a) professor(a) absolutamente incompetente”. Também afasto este, porque em qualquer profissão não devemos, à partida, pôr o problema da incompetência; se um profissional se revelar incompetente têm de existir mecanismos que resolvam essa situação. Serei acusado de lirismo, mas desconfiar sistematicamente de quem exerce uma profissão torna impossível uma vida social saudável.
Passarei agora aos argumentos que considero deverem ser ponderados; uns são de natureza pedagógica, outros têm mais a ver com aspectos de ordem administrativa que os pedagogos não podem nem devem ignorar.
Vamos aos primeiros.
A criança que entra na escola básica, independentemente de ter frequentado ou não um estabelecimento de educação pré-escolar, vai vivenciar uma realidade nova que, não raras vezes, é percebida como ameaçadora. Por isso pode pensar-se que a existência de um professor único seja securizante para ela. A professora é a substituta da mãe, o professor, do pai; não é raro, nos primeiros tempos, o aluno dirigir-se ao professor enganando-se na designação, chamando-o “mãe” ou “pai”.
A entrada na escola significa que a criança vai continuar a aprender a realidade que a cerca. Continuar, porque ela está a aprender desde o berço. É bom que no momento em que a educação passa para a competência de profissionais ela seja encaminhada para aprendizagens com um significado – e por isso a base da educação nos primeiros tempos da escola deve ser a aprendizagem das linguagens, o saber ler, escrever, falar, interpretar a linguagem dos números, bem como interpretar a linguagem dos sons, das cores, dos movimentos. Um professor generalista faz aqui todo o sentido, para depois de algum tempo entregar a professores especializados a sequência daquelas aprendizagens que só com dificuldade ele domina. Por que digo que faz todo o sentido? Por duas razões. A primeira, porque o professor deve conhecer profundamente o aluno e uma convivência continuada favorece esse conhecimento e, portanto, dá ao professor a possibilidade de usar, como esse aluno, as estratégias adequadas para que ele aprenda melhor. A segunda porque, neste momento de iniciação, mais importante do que o saber profundo de disciplinas – e é evidente que ninguém pode dominar todos os saberes, das línguas à música passando pela matemática, ciências, história – é a transmissão de uma mensagem importante, a de que a realidade não é compartimentada em ciências várias, pelo que a compreensão da admirável unidade que a vida configura será mais bem apreendida se ela derivar de uma só pessoa. O professor deve ter o conhecimento básico das diferentes matérias que constituem o currículo do 1º ciclo, em especial deve conhecer as didácticas possíveis para as aprendizagens nucleares (como é citado pelo Ademar, a iniciação à leitura e à escrita, por exemplo). Concebo mal, na verdade, que uma criança até aos dez anos mude de professor para professor, embora esteja de acordo que em situações claramente favoráveis possa acontecer o chamado ensino em equipa, que em Portugal foi ensaiado sobretudo em escolas de área aberta, as chamadas P3 (como foi originariamente a Escola da Ponte).
E entronco aqui outro argumento, menos pedagógico e mais administrativo. A esmagadora maioria das escolas existentes em Portugal não tem instalações compatíveis com uma solução tipo “team teaching”, nem, muitas vezes, o número de alunos ideal para a concretizar. Também aqui a Escola da Ponte é um paradigma; quando a visitei pela primeira vez tinha pouco mais de 100 alunos. Se crescer muito, pode pôr em risco a sua qualidade (esta, claro, é uma opinião).
A acção deste professor generalista pode (e seria melhor dizer, deve, mas há casos em que tal não pode suceder) ser complementada em áreas para as quais não tenha, na verdade, competência. Enquanto que para o que eu poderia chamar o núcleo “duro” do currículo, o percurso escolar do professor, culminando na escola de formação que frequentou, deve ser suficiente, para áreas como a música ou a educação física só em casos excepcionais poderemos esperar que exista competência. Por isso a legislação prevê a tal “coadjuvação”.
Em síntese, porque já escrevi muito para a dimensão de um blog...
Não sou apologista de uma uniformidade de processos, embora compreenda que tenham de existir regras. Não sou pois contra o ensino em equipa no básico, mas tenho a maior reserva para uma especialização precoce junto das crianças. O professor especialista deve aparecer mais tarde (note-se que em alguns países o professor único, generalista, tem a seu cargo os primeiros seis anos e, se não erro, mesmo mais). Dado à situação actual das nossas escolas e dos nossos professores, não me parece que qualquer movimento no sentido de generalizar a extinção do professor generalista possa vir a ter qualquer êxito.
Ficou muito por dizer e há muito para criticar…
Fico esperando!