2005/05/28

O Maio de 1965 (3)


Manuscrito do plano da minha lição de Exame de Estado

Dia 28 de Maio de 1965. Lembro-me de como estava o dia, em Coimbra: cheio de sol e já quente. A aula era às 11 e 30, numa sala normal. Tinha logo de manhã trazido os dois textos que ia usar para serem duplicados na máquina a álcool que o liceu tinha, pedira um mapa no gabinete de Geografia, e nos dez minutos antes da aula começar (o intervalo dos alunos) estive a desenhar no quadro um croqui da batalha de Alcácer-Quibir. Não havia no Liceu nem diapositivos nem gravuras capazes para eu usar.

Recordo-me que os meninos entraram muito compostos e se portaram muitíssimo bem. É preciso ver que estavam a ser observados (como eu!) por um júri de sete membros, que se sentaram no fundo da sala. Quem eram esses membros? A presidir estava um professor da Faculdade de Letras de Coimbra, o Doutor Torcato Sousa Soares. Além dele, os seis metodólogos dos três liceus normais: Fernando Gilot (Filosofia) e António Stott Howorth (História), de Lisboa; Adelino Carvalho Martins (História) e Cândido Ferreira (Filosofia), do Porto; e Alberto Martins de Carvalho (História) e André Vicente Lapa (Filosofia), de Coimbra. Digo-lhes que era um friso!
Escrevi, nessa tarde, no meu diário de estágio:

“Não é o momento oportuno – talvez que esse momento nunca mais chegue! – para fazer o balanço da lição que dei.
Estava, não nervoso, mas excitado: por tal forma que a meio da lição se me “secou a garganta”…
Quando terminei, estava coberto de suor, exausto. Satisfeito – para mim, realizara uma lição ao nível de quantas tinha dado durante o meu estágio; usara os processos que na generalidade, se impunham; fizera uma aula mesmo activa: mas… o que diriam «eles»?”

“Eles” acabou por ser ele – o arguente (que durante a aula escrevera, escrevera, escrevera…), o Dr. Carvalho Martins, do Porto – e o seu comentário fez-me muito feliz. Não transcrevo o que escrevi no meu diário porque poderia ser mal interpretado – estava tão contente que exagerei, certamente, nos elogios em causa própria.

A quarenta anos de distância, contudo, penso que com os meios de que dispunha fiz na verdade o melhor que era possível fazer-se naquelas condições. Com uma turma desconhecida, sem pontos de referência sobre o que conheciam dos antecedentes, perante o olhar inquisitorial do júri, podia ter fraquejado, mas não fraquejei. Claro que hoje faria uma aula completamente diferente, com os meios que poderia dispor.

Recordo-me que a discussão da lição terminou muito tarde – a aula acabou perto do meio-dia e meia hora, houve uma meia hora de intervalo e só depois o júri se reuniu comigo. Lembro-me que o próprio professor da Faculdade de Letras me cumprimentou por ter usado um certo livro que citei na bibliografia. E recordo-me que quando tudo acabou, passada a hora do almoço há muito, nem fome sentia…

O estágio estava prestes a acabar, mas ainda faltavam duas provas. No dia seguinte houve uma prova oral sobre pedagogia geral, e no dia 3 de Junho uma prova escrita sobre métodos de ensino do tema “Movimentos autonomistas – Emancipação das Colónias espanholas da América”. Provas que na altura já pouco significavam para mim, que sabia que a lição era sempre a que marcava.

O estágio, como já disse em post anterior, foi muito importante na minha vida profissional. Não tanto pelo que me ensinaram mas pelo que aprendi (pode parecer estranho mas não é). Tive uma excelente relação de trabalho com todos os meus colegas de estágio, do meu e de outros grupos, vivi intensamente todos os momentos, e tive ainda ocasião de, não sendo aluno da Universidade, perceber o encanto de estudar em Coimbra. Num momento muito difícil da minha vida, um mês e pouco depois de começar o estágio, em que caí gravemente doente, experimentei a solidariedade coimbrã, a níveis que não imaginava, como ter sido tratado sem pagar um centavo por um professor catedrático da Universidade, o Doutor Antunes de Azevedo, que se deslocava a casa para me ver, visto eu não poder andar.

Como disse, nesses tempos havia exigência. Não digo que não exista hoje, claro, mas estou certo que poucos trocariam os esquemas que existem pelo estágio comprido, cheio de patamares com provas, que vigorava nos anos sessenta.

Termino aqui a minha evocação do que fiz há quarenta anos. Ainda no activo: se acrescentar, a esses quarenta, os seis anos anteriores, tenho quarenta e seis anos de serviço público. Não terei remorsos pois, quando me aposentar, sei que não lesei o erário público…

2005/05/27

O Maio de 1965 (2)


Do meu Diário de Estágio...

Faz hoje quarenta anos estava na véspera do “grande dia”. O grande dia, como já disse há uns tempos, era o de “dar” a minha lição de Exame de Estado. Desde que prestara as provas de “cultura” (a que me referi em post anterior) que aguardava a marcação da data, a qual só foi conhecida uns dias antes. Nesse 27 de Maio de 1965 fui, pelas 9 horas, à Biblioteca do Liceu D. João III, e na presença dos dois metodólogos, eu e os meus dois colegas fomos convidados (não me recordo por que ordem) a tirar um papelinho dobrado em quatro de dentro de uma redoma.
O meu papelinho (gravura) ditou a minha sorte: “4º A, História”. Isto significava que eu tinha de ir à procura do livro de ponto da turma A do 4º ano (actual 8º), ver qual a última rubrica do programa que tinha sido dada, e depois, preparar a aula sequente. Nunca tinha contactado com aquela turma – não era turma de estágio – e nem sabia quem era o professor que dava História. Aguardei pelo intervalo, falei com a professora (não tenho o nome dela nos meus registos…), soube o ponto do programa que devia abordar, e pedi-lhe algumas indicações sobre os alunos, quem eram os mais participativos… Obtive dela uma planta da sala com os nomes dos alunos. Depois, fui à sala e pedi ao colega que lá estava se no fim me podia dispensar uns minutos para eu falar com os alunos. Queria pô-los de sobreaviso para não estranharem a minha presença no dia seguinte. De uma maneira geral estavam preparados para essa contingência, num Liceu com estágio este tipo de coisas acontecia com naturalidade. Gostei da turma, teria uns trinta e oito alunos (era muito frequente naquele tempo, turmas com esta dimensão), mas eram vivos, e prometeram ajudar-me. Depois… bem, depois, fui para casa pensar no plano da aula, que tinha o seguinte tópico que podem ver na gravura.
Conservo, nos meus papeis, o rascunho do plano de lição que tinha de entregar, antes da aula, aos metodólogos. Tinha nessa altura uma máquina de escrever portátil, uma Hermes Baby. Não havia ainda fotocopiadoras (se havia, no Liceu eram desconhecidas) e por isso, para fazer cópias, usava papel muito fino para que as letras obtidas à custa do papel químico se conhecessem… Só que, por isso, não fiquei com nenhuma para mim. Lembro-me de à tarde ainda ir procurar uns textos à Biblioteca e de, depois de jantar, ter decidido prescindir de ver, no Café, a final da Taça dos Clubes Campeões Europeus entre o Inter de Milão e o Benfica, receoso de esse tempo me vir a fazer falta. Hoje, a quarenta anos de distância, só não acho que fui tolo porque o Benfica perdeu (1-0) e foi melhor saber de chofre, no outro dia, do que ir sofrendo ao longo de 90 minutos…

De qualquer modo, devo ter dormido bem. Estava contente com o plano; estava de acordo com a metodologia seguida, que na altura era fundamentalmente interrogativa-expositiva, com recurso a documentos (textos, gravuras, diapositivos). Tinha confiança em ter assimilado bem a arquitectura da lição; só esperava ser calmo como de costume.

Amanhã, o dia em que fará 40 anos que dei a minha aula, escreverei sobre ela.

2005/05/26

As licenciaturas em Letras antes do 25 de Abril


A propósito do meu post sobre os meus professores na Faculdade de Letras de Lisboa nos anos 50 do século passado, PJ manifestou interesse em saber mais sobre o que eram, ao tempo, as teses de licenciatura. Pensei que seria interessante, em vez de responder ao comentário, dar uma informação mais vasta – no fundo, é um aspecto da história do nosso ensino superior de há 50 anos que pode interessar a mais leitores.

As Faculdades de Letras ofereciam licenciaturas em Filologia Clássica, Românica e Germânica, Histórico-Filosóficas e, em colaboração com as Faculdades de Ciências, em Ciências Geográficas (quatro anos de curso com disciplinas e a exigência de um exame de saída, necessário para completar o grau, o qual consistia, no caso do meu curso, numa prova escrita de Lógica e em quatro provas orais – História de Portugal, História Moderna e Contemporânea, e Filosofia, além da defesa da tese). Não se impedia que o aluno requeresse esse exame de saída no fim do 4º ano, mas o número de candidatos que aproveitou essa hipótese parece que não excedeu o número de dedos de uma mão. Era de uma violência extrema assistir a aulas, fazer exames das disciplinas e ainda fazer a tese.

Então, o que era a tese?

O aluno escolhia livremente o tema que queria trabalhar, procurava o professor da área escolhida, obtinha o seu assentimento… e começava. Falo por mim, mas penso que genericamente o mesmo se passava com os colegas: era um trabalho para o qual contávamos com muito poucos apoios na Faculdade. Não havia, como hoje, um acompanhamento por parte do orientador; ao longo do tempo terei estado com o professor da disciplina que tinha de ver com a minha tese, arqueologia, umas três vezes… Fora isso, a tese era assimilável às teses de mestrado de hoje. Tanto quanto me lembro não havia regulamento que condicionasse quer a dimensão quer o formato da tese. A minha, que como disse foi sobre Arqueologia, tinha dois volumes, um de texto e outro de gravuras (a maior parte fotografias) com 294 e 99 páginas, respectivamente.

Quando comecei a pensar na tese, no final do meu 3º ano, ainda hesitei entre a História e a Filosofia. Ainda não tinha sentido o apelo da arqueologia (a disciplina era só no 4º ano) e o estudo de um filósofo atraía-me. Mas quando comecei a estudar arqueologia fiquei fascinado. Cheguei mesmo a pensar que seria essa a minha área de especialização, mas tive de deixar cair esse sonho. Bom, quando abordei o professor (recordo o seu nome, Manuel Heleno) e lhe disse que gostava de fazer uma tese em arqueologia, sugeriu-me logo a monografia de Torres Vedras, uma região que é muito rica em espólio de diversas épocas. Deu-me então o nome de um arqueólogo local que, não sendo o director do Museu (que hoje, aliás, ostenta com inteira justiça o seu nome – Leonel Trindade) era o mais conhecedor da arqueologia da região. Fui a Torres falar com ele (possuía um estabelecimento comercial no centro da então vila). Recebeu-me bem, abriu-me as portas do Museu e prontificou-se a ajudar no que pudesse. Em boa hora me decidi, porque durante alguns meses tive na região de Torres um trabalho aliciante, complementado por muitas pesquisas bibliográficas, sobretudo na Biblioteca Nacional. Estudei todas as peças do Museu e identifiquei todos os sítios com interesse arqueológico, fazendo mesmo prospecção e obtendo muito material, por exemplo nas praias elevadas de Santa Cruz. Não me posso queixar: tive de várias pessoas bons apoios, fora do meio da faculdade, que nunca esquecerei, sendo certo que a maioria delas já não está viva. Referi no meu post um deles, Bandeira Ferreira, que ao tempo trabalhava no Museu de Belém, um homem conhecedor, inteligentíssimo, que me ensinou muito. Mas tive contactos mais ou menos extensos com todos aqueles que na altura trabalhavam em arqueologia pré-histórica em Portugal, como Octávio da Veiga Ferreira, Georges Zbyszewski, Fernando Castelo Branco, Afonso do Paço, e ainda com o Dr. Aurélio Ricardo Belo, que possuía uma colecção de instrumentos da região, por ele recolhidos, e que me permitiu estudá-la.

Recordo que devo ter gasto uns bons seis a sete meses no trabalho de campo, com idas e estadias frequentes a Torres Vedras. Como era natural na altura, não tinha automóvel, por isso ia de comboio ou de autocarro, e ficava numa residencial, bem situada perto da Havaneza dos pastéis de feijão… Depois, bem, depois foram três meses para redigir a tese. A dactilografia entreguei-a a uma senhora que trabalhava na Biblioteca Nacional.

Como disse, o meu “orientador” não leu uma linha que fosse do meu trabalho. A tese era apenas uma parte da licenciatura. E só era defendida se o candidato passasse com êxito os exames (escrito e orais). Na verdade qualquer deles era contingente, dada a vastidão dos temas. Recordo-me que o exame de História de Portugal esteve longe de me agradar; o de Filosofia correu bastante bem, como o de História Geral. A arguição da tese pertencia somente ao professor (até me custa dizer orientador…). Ainda conservo as notas que tomei e o resumo que fiz da minha defesa. Não que me tivesse batido muito, mas alguns erros apontou.

Tudo isto durava três dias, ao fim dos quais era publicada a nota final, que nunca soube bem como era formada, mas penso que era votada, ou seja, não havia médias com as notas das diferentes disciplinas do curso com as dos exames. O júri decidiria por consenso (ou votação).

Terminei a minha licenciatura em 29 de Julho de 1959. Tinha 23 anos…

As Crónicas na RUM (9)


De vez em quando, há semanas em que não faltam assuntos para a crónica semanal que assino na Rádio Universitária. Esta é uma delas, e não resisto a fazer uma espécie de “pot pourri” e passar em revista todos esses temas que despertaram a minha atenção.

Começo por referir a escolha de António Guterres para Alto-comissário para os Refugiados, o alto cargo da ONU. Acredito, pelo que dele conheço, que será este o cargo que em toda a sua vida desempenhará com maior motivação, até porque é aquele que melhor corresponde à sua visão do mundo e à sua sensibilidade para os assuntos sociais. Guterres não foi Presidente da União Europeia porque não quis; pois bem, ele está agora no lugar certo para desenvolver uma acção que será certamente de grande alcance. Parabéns, Engenheiro António Guterres.

Em contrapartida, aí vêm as medidas de austeridade que todos reclamavam e que já começaram a ser contestadas… À hora em que gravo esta crónica não sei quais são essas medidas – aumento de impostos, congelamento de carreiras, novos preços para os combustíveis? Sejam quais forem, serão como é evidente impopulares, mas depende dos pormenores fazer uma análise mais fina. Tenho para mim que seria possível encontrar soluções socialmente justas na época difícil que vamos (ou estamos) a atravessar – será que elas foram tomadas? Seja como for, Portugal tem de encontrar um rumo diferente para poder consolidar a sua posição no seio da Europa.

E por falar da Europa: vem aí o referendo francês ao tratado a que muitos chamam constituição europeia. Há uma expectativa grande em relação ao resultado, que pode ter consequências complicadas para o nosso futuro. Gostaria que o sim vencesse, porque acredito que a Europa precisa de um novo figurino que a torne mais consistente, e não tenho quaisquer medos em relação a perdas de autonomia, uma vez que estaremos sempre condicionados, como pequeno país que somos, a não podermos agir sozinhos.

Finalmente, neste fim-de-semana assistimos à celebração da conquista do campeonato da Liga Profissional de futebol pelo Sport Lisboa e Benfica, que há onze anos não dava essa alegria aos seus adeptos. Independentemente da cor clubista de cada um, há que reconhecer que essa celebração teve contornos que nos deixam perplexos. E se por um lado acho excessivo o tempo que a televisão gastou ao mostrar tudo ao pormenor, tenho de admitir que a expressão dos festejos só é possível a um grande clube que tem adeptos espalhados por todo o país, por todo o mundo, direi. Parabéns ao Benfica e a quem o sente como clube do coração.

Ate para a semana.

2005/05/25

A educação sexual nas escolas


Desde que o Expresso publicou, no dia 14 de Maio, a desenvolvida notícia sobre o “manual” de educação sexual usado em algumas escolas que tenho hesitado em escrever as minhas reflexões sobre o tema. Aliás, dos blogs que costumo visitar (por vezes com mais intervalos do que gostaria) só dois (Casa do Professor e Um pouco mais de azul) abordaram o tema. Mas ele é importante e merece ser, claramente, discutido.

Vou partir, de acordo com a índole do meu blog, procurando memórias da minha infância e adolescência. Nunca os meus pais abordaram comigo, em qualquer circunstância, e em qualquer idade, qualquer assunto relacionado com o sexo. Ou seja: eu, que os considerei os meus primeiros professores, tenho neste caso de dizer que terão falhado. Acho (mas só posso dizer, acho) que aprendi muito coisa sobre sexualidade lendo, inicialmente sem perceber muito bem o que lia. Depois, aprendi onde creio que a maior parte dos miúdos acaba por aprender: na escola, com os primeiros amigos, há sempre quem “saiba” mais… Mas a minha memória recupera um dado que eu considero extraordinário (até para a época). Tive um professor de Religião e Moral (sacerdote, cujo nome não recordo mas que também não identificaria) que numa das suas aulas, se não me engano do 4º ano (actual 8º), a propósito da castidade, introduziu no seu discurso alguns conselhos sobre a sexualidade fora do casamento em que não considerou apenas a castidade – isto em 1951, creio!

Parto pois de uma realidade que não vale a pena ignorar: a escola, seja ela qual for e como for, é um terreno onde as crianças e adolescentes vão ouvir falar de sexo e vão sentir, na sua evolução, o desenvolvimento da sua sexualidade. É portanto ridículo dizer que a escola deve ficar à margem de algo que nela acontece. Contudo, seria também ridículo considerar que em assunto delicado a família deva ser ignorada. Não pode nem deve. A educação sexual deve começar em casa. Mas quantos pais a assumem? Quantos não suspiram que outros façam o trabalho que deve ser deles?

E a escola, como deve actuar?

Devo dizer que considero este um dos aspectos mais preocupantes com que tem de lidar quem tem de tomar decisões sobre o currículo. Os problemas da sexualidade não são passíveis de ser resolvidos linearmente. Não são apenas de uma área: eles têm uma abordagem fisiológica, inelutável, mas também psicológica, e ética, e religiosa. A sexualidade acaba por ser também uma manifestação das diferentes culturas.

Mas vamos a uma análise mais chã. Em primeiro lugar, está fora de causa que a educação sexual deva ser uma disciplina. A escola já está demasiadamente espartilhada por disciplinas. Sem dúvida que há uma base de conhecimentos a adquirir, mas será muito mais eficaz a sua aprendizagem se ela for apropriada em situação menos formal e aberta do que assinala em horários, haja ou não toque de campainha. Por isso se defendeu no Ministério da Educação que a educação sexual seria uma área transversal, não disciplinar, deixada à organização de cada escola. É, a meu ver, como deve ser.

Não havendo uma disciplina, não há “programa”, ou seja, uma lista de tópicos que devam ser abordados. O Ministério, porém, fez divulgar o que se designa por “orientações curriculares”. O nome diz tudo: orientações. As escolas, os professores, no quadro da sua autonomia (subordinada ao projecto educativo de escola, aprovado pela Assembleia de Escola), devem elaborar os projectos curriculares e definir as actividades a desenvolver.

Neste ponto, temos de considerar um conjunto vasto de situações problemáticas, as que causam a minha preocupação. O pressuposto de que as Escolas podem responder satisfatoriamente a este desafio está longe de poder ser garantido. Há um grande número de casos em que a gestão declina a autonomia ou a assume de maneira incorrecta. Do mesmo modo, um professor que não teve formação pode ter dificuldades em conduzir actividades de educação sexual. E se tem dificuldades não deve assumir o ónus de poder falhar (seria desastroso que a gestão de uma escola “obrigasse” um docente a uma actividade que ele sente não poder realizar, se para ela não teve formação).

Adicionarei uma outra realidade, a que despoletou o artigo do Expresso, a existência de “manuais”, cadernos de exercícios, CDs ou DVDs, enfim – toda aquele conjunto de materiais que expeditamente as editoras se apressam a produzir.

Se por um lado tenho de admitir que quem elabora esses materiais deva ser qualificado para o fazer, e por outro que, por mais que tente ver o mundo com os olhos de hoje, eu não consiga alijar a carga dos meus já muitos anos de vida, e possa por isso ser um pouco conservador, não há dúvida que fico preocupado com o modo como em algumas situações se está a fazer educação sexual e fiquei chocado com o tipo de “exercícios” propostos para crianças. Mas atenção, eu não estudei com cuidado essa área, não sou “expert”, e sei que existem numerosos trabalhos feitos, investigações credíveis a que é preciso dar atenção.

Seria importante que os verdadeiros especialistas debatessem entre si projectos e tentassem obter consensos que permitissem às escolas a sua consecução. Ouvindo naturalmente as famílias – coisa mais fácil de escrever do que fazer, porque nenhuma associação pode representar todas as famílias… E talvez aceitando que, como em relação a outros aspectos da vida, a uniformidade é indesejável.

Mas não será fácil obter consensos. Ainda no domingo passado, no programa da TSF Acontece (de Carlos Ponto Coelho), o debate “aqueceu” a níveis quase impróprios para o tipo de convidados que discutiam o tema…

Tenho a sensação que adiantei pouco com este post, a não ser dar a minha opinião. Mas não é essa a função de um blog?


2005/05/24

A galeria dos meus professores (5)


Entrei para a Faculdade de Letras de Lisboa, a fim de fazer o curso de Ciências Histórico-Filosóficas em 1954 e acabei a minha licenciatura em 1959. Como era hábito na altura entre os alunos que pensavam seguir a carreira docente (e era o meu caso, porque sempre quis ser professor) inscrevi-me nos quatro anos do curso em mais uma disciplina de outro curso (o de Ciências Pedagógicas) que era necessário para aceder ao estágio para professor do ensino liceal.
Dividido em duas secções, a História e a Filosofia, nenhuma delas se distinguia em relação à outra. Tive professores bons, razoáveis e maus. Mas de um modo geral tive uma grande decepção. Como disse atrás, no terceiro ciclo do Liceu tivera um grupo de excelentes professores, e na Faculdade tudo era muito diferente, mais impessoal. Aprendi aí a perceber o sentido da frase de Carlile: “A verdadeira Universidade é uma colecção de livros”.

Procuro identificar quem mais me impressionou e à distância vem-me à memória um nome: Vieira de Almeida. Impressionou-me pela sua personalidade e não por me ter “ensinado” o que era suposto fazer: Lógica. Francisco Vieira de Almeida terá sido um dos primeiros pensadores que em Portugal defendeu os princípios da lógica matemática, mas considerava que os alunos que iam frequentar as suas aulas não teriam preparação para seguir a fundo a matéria (no que tinha razão!) e então faziam aulas interessantíssimas, aulas de cultura no seu estado mais puro, mas raramente falava de Lógica… No entanto, recordo-o aqui como um homem inteligentíssimo, vivo, com um humor espontâneo (algumas das anedotas que contava nas aulas ficaram célebres), sempre muito crítico. Era monárquico mas apoiou a candidatura de Humberto Delgado, tendo por isso sido preso, precisamente no meu 4º ano do curso. Consegui na Internet uma notícia que podem ver Delfim Santos (Pedagogia) , Carlos Ferreira de Almeida (História Moderna), Mário Chicó (História de Arte). Posso acrescentar à lista Virgínia Rau (História de Portugal). As disciplinas de filosofia estavam muito dependentes de Délio Nobre Santos, de quem tenho uma “memória neutra”… De outros, fiquei com má e até péssima impressão. Embora me tenha apaixonado pela arqueologia pré-histórica não foi por causa do professor, ainda que tenha dele a ideia de um homem sabedor, mas mais por influência de alguém que estava fora da Universidade e trabalhava então no Museu Leite de Vasconcelos, em Belém, o Dr. Bandeira Ferreira, falecido em 2002.

Aliás, a Faculdade de Letras do meu tempo estava longe de entusiasmar. As melhores cabeças tinham sido afastadas por motivos políticos, como Rodrigues Lapa, Hernâni Cidade, Newton de Macedo, e mais tarde Vitorino Magalhães Godinho. Note-se que a Faculdade de Letras de Coimbra não era melhor.

Se guardo algumas boas recordações da minha passagem pela antiga Faculdade de Letras, a maior parte não se deve aos professores que tive, mas a amizades que cultivei, a aprendizagens que eu próprio assumi como necessárias e a alguns factos que me proporcionaram momentos difíceis de esquecer, como por exemplo ter estado em conferências de Jean-Paul Sartre e de Gabriel Marcel, que estiveram em Lisboa em meados dos anos 50.

Nos finais de 1958 a Faculdade de Letras deixou as velhas instalações e passou para a Cidade Universitária, e foi lá que acabei o meu curso, com os exames e a defesa da minha tese, intitulada A Arqueologia do Concelho de Torres Vedras: Contribuição para o seu estudo até à época Lusitano-Romana. Nessa altura, não tendo perdido a ideia de ser professor, a arqueologia (sobretudo a pré-histórica) era o meu interesse dominante. Um dia revisitarei estas páginas da minha vida, ainda que exista algum melindre em recordar tudo o que aconteceu…

Resumindo: não tive, nem tenho, dos meus primeiros professores da Universidade, as mesmas boas memórias que tive, como contei, dos que no fim do secundário me prepararam para o futuro próximo.