2020/04/08

Consequências do Covid-19 na educação: que fazer do resto do ano lectivo?


Tenho pensado em como se pode (ou, talvez com mais propriedade, como se deve) decidir o complicado problema do presente ano lectivo, interrompido pelo surto do Covid-19. Algumas vezes, faço-o como se partilhasse alguma responsabilidade como quadro do Ministério da Educação (situação em que estive no passado durante uns anos); outras como professor, que fui durante muito tempo: cerca de nove anos no ensino secundário, dois numa escola do magistério primário, e mais de vinte no ensino superior (politécnico e universitário), neste último caso como docente, tendo exercido alguns cargos de gestão.

É verdade que há praticamente catorze anos estou afastado das lides escolares, mas acredito que apesar das mudanças – ou, talvez, por causa delas – o meu pensamento não terá perdido a vertente de coerência que sempre quis manter. Por isso senti-me hoje tentado a pôr por escrito o que tenho pensado. Previno que o que vou dizer aplica-se quer ao ensino dispensado pela escola pública quer ao privado. E ainda que não faço qualquer referência aos alunos que na escola inclusiva (que se deseja) tenham dificuldades de aprendizagem.  


Comecemos pelo princípio. Quando foi decidido o encerramento das escolas já eu pensava que isso devia ter sido feito. Se não me engano, a Universidade do Minho terá sido, senão a primeira, uma das primeiras instituições a fazê-lo, e bem. Nesse momento não me preocupava absolutamente nada com o que pudesse acontecer no futuro: o importante era, então, impedir uma situação de contágio fácil e, também, não deixar que crescesse um já evidente ambiente de receio, quase pânico, que tornaria muito complicado o dia a dia nas escolas.

O que se seguiu, ainda não muito claro para mim, pareceu-me ser o seguinte. No ensino superior, onde o ensino a distância tem vindo a ser ensaiado, terá havido uma resposta positiva, no sentido de continuar o ano lectivo com uma relativa normalidade. Vale o que vale, mas tenho conhecimento de que numa instituição universitária, em Lisboa, uma docente confessou que as suas aulas estavam a correr tão bem que até parecia que os alunos estavam a corresponder melhor do que nas presenciais.

No que se refere aos ensinos básico e secundário a situação não poderia ser a mesma. A esse nível, e apesar de há muitos anos a formação dos professores ter insistido na utilização das tecnologias no processo de ensino-aprendizagem, passar de aulas presenciais a ensino a distância não é fácil. Tem havido uma certa informação laudatória sobre como professores se têm adaptado, mas permito-me ter algum cepticismo. Acredito que em alguns casos coisas excelentes possam ter acontecido, mas duvido que tenham sido muitos. Seja como for, passar com um estalar dos dedos de um sistema presencial para um sistema a distância e ter sucesso seria digno de figurar no Guiness.

À medida que foram sendo tomadas medidas restritivas prenunciadoras de que a evolução da pandemia exigiria mais tempo de recolhimento, o problema do futuro do ano lectivo tornou-se mais complicado. Nas últimas semanas surgiram declarações diversas e mesmo notícias mais ou menos oficiais acerca de um possível final de ano em que predominaria um ensino a distância. Essas notícias foram reforçadas com a difusão de um ”Roteiro” com a indicação de oito princípios orientadores para a implementação de um ensino a distância nas escolas. Finalmente, há dias, o Ministro da Educação, em entrevista à SIC, confirmou existir um plano para utilizar a televisão, recriando a Telescola, bem como outros meios, para atacar o último período do ano lectivo. A Telescola?!

Fiquei preocupado. Sempre pensei que a escola devia aproveitar ao máximo as potencialidades que a tecnologia lhe está oferecendo, mas sem nunca ousar pôr de parte a mais importante peça do processo educativo, que é o professor. Nem, também, desprezar aquelas tecnologias mais pobres mas por vezes indispensáveis – como o quadro preto ou a velhinha ardósia…. Tenho aguardado um dia em que responsáveis admitam que esse momento chegou e apresentem um plano com cabeça, tronco e membros que reestruture a escola em Portugal.

Ora o plano que referi há pouco não será, certamente, o que o Ministro anunciou. Tal plano não se compadece com emergências – terá de ser muito bem pensado, desenhado e preparado com quem tenha de o executar. Por isso, tenho as maiores dúvidas acerca de qualquer solução que tente colmatar a inexistência de um terceiro período no qual os alunos continuem sem contacto directo com os seus professores. Directo e presencial.

Compreendo, no entanto, que nesta situação excepcional se tenham de tomar medidas excepcionais. Que afectarão muita gente e nunca poderão obter consensos. Tentemos compreender os pontos essenciais na situação actual.

Antes de mais: partindo do que sabemos hoje, e tendo como base o que nos é cautelosamente dito pelas autoridades da área da saúde, excluo que as escolas possam reabrir em Maio.  

Assim sendo, farei a seguinte análise.

Ponto um: descartemos o ensino superior, universitário e politécnico. As escolas decidirão como enfrentar as suas dificuldades, e pelo que se percebeu até agora, fá-lo-ão bem e o ano lectivo terminará com alguma normalidade.

Ponto dois: ensinos básico e secundário. Têm, basicamente, o problema comum de o fecho das escolas pôr a nu uma realidade por vezes esquecida e por vezes propositadamente oculta: o de as escolas terem também uma função de guarda das crianças (e de algum modo de alguns adolescentes). O número de pais e mães que estão em casa porque os filhos não têm escola e que, por isso, não podem trabalhar, será grande (mas não conheço o número). Acredito que os responsáveis políticos tentem colocar esta realidade como muito importante no momento da decisão.

Esquecendo esse problema, dividamos as dificuldades. As crianças em idade pré-escolar terão, em casa, com as diferenças decorrentes do seu meio social, o acompanhamento possível, e, para além de privadas da socialização com os colegas e educador(a), o não ter escola não é mal maior.

Para os alunos do ensino básico a situação é diferente. Chamou-se a Telescola como hipótese. Mas como? Quem se lembra daquilo que todos identificavam como Telescola – e uma grande parte da população mais nova, professores incluídos, não se lembrará – tem a imagem do C.P. TV (Ciclo Preparatório TV), que mais não era do que a leccionação regular, ao longo do ano escolar, das disciplinas do currículo do 1º e 2º ano do então designado ensino preparatório (actuais 5º e 6º anos), com aulas dadas pela televisão por professores especialmente treinados para o efeito, aulas essas que eram recebidas em salas onde os alunos contavam com a presença e apoio de um professor, que era chamado professor-monitor, o qual tinha um pepel predominante no processo, pois tinha de dar vida à lição vista no aparelho e apreciar as aprendizagens obtidas (a cada lição correspondia, genericamente, um determinado trabalho). Ou seja, a Telescola estava organizada para uma turma com um professor – o que, evidentemente, não pode acontecer agora.

Estou muito curioso em saber o que se está a pensar fazer que possa verdadeiramente contribuir para que alunos do ensino básico das diferentes centenas de escolas do país progridam de acordo com os programas das disciplinas curriculares (e já nem coloco em causa as experiências de flexibilização, com as quais me congratulei desde o princípio).

Com este cenário, que pensar dos exames do 9º ano?

Deixemos isso em suspenso e passemos ao ensino secundário. Bom, aqui temos uma situação à partida delicada: o 12 º ano e a sua necessidade para acesso ao ensino superior. Estamos perante um conjunto de alunos cuja maturidade e, espero, motivação, pode fazer a diferença se lhes forem facultados meios. É porventura possível pensar que sejam encontrados nas escolas e nos professores as condições para criar um sistema de ensino a distância muito simples, com base em plataformas existentes (incluindo contactos telefónicos, e-mail, Skype), e, se as circunstâncias vierem a permitir, mesmo contactos presenciais.

Isto é, o 12º ano seria a excepção. Para todos os outros anos do ensino básico e secundário as actividades formais nas escolas cessariam. Não excluo que informalmente, com o apoio do Ministério ou sem ele, que cada escola pudesse providenciar actividades a serem desenvolvidas a partir de propostas de temas interdisciplinares para os quais diferentes elementos de estudo pudessem ser veiculados a distância – pela televisão, pela Internet – ou por pesquisa individual dos alunos. Isso, cada conselho de turma deveria decidir.

Com excepção do 12º ano, não haveria avaliação em qualquer caso, incluindo o exame do 9º ano. Os alunos matricular-se-iam em 2020-2021 no ano seguinte ao que frequentavam agora. Porquê? Porque com meio ano de aulas decorrido, que avaliação segura sustentaria uma decisão? Fazer perder o ano a todos – isso ocorreu-me – seria justo? E fazê-lo só para alguns, com base numa avaliação insegura? Seria igualmente justo?

Mas ao fazer transitar toda a gente, não se corre o risco de no próximo ano faltarem bases para muitos – eventualmente, todos – os alunos? Em algumas disciplinas, sem dúvida – mas não estamos nós a testar a flexibilização dos currículos?

Chegado aqui, e sem querer invocar um argumento de autoridade, lembro que há dias o  ex-ministro Marçal Grilo, numa entrevista à Rádio Renascença (ver aqui a notícia) disse que “não o chocaria” que o ano lectivo fosse encerrado para todos os alunos, com uma única ressalva, que seria a de encontrar uma solução para os alunos do 12º ano, para os quais a aprendizagem a distância poderia ser encarada.

Aqui está o que pensei ao analisar esta conjuntura difícil, até para mim, que me vejo “confinado” por largo tempo no meu apartamento…

Post scriptum – Eu sei que os gramáticos aceitam “ensino à distância” como possível, mas sempre usei, e continuarei a usar (e gosto de ver que o nosso Ministério da Educação também o faz) “ensino a distância”. Quando eu digo “a distância” tanto posso pensar no aluno que vive a 100 metros do meu computador como aquele que está em Braga, por exemplo, e me segue. Se eu penso “à distância” tenho de me perguntar a que distancia me refiro… À de 100 metros ou à de 350 quilómetros?

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