Tenho pensado em como se pode
(ou, talvez com mais propriedade, como se deve) decidir o complicado problema
do presente ano lectivo, interrompido pelo surto do Covid-19. Algumas vezes,
faço-o como se partilhasse alguma responsabilidade como quadro do Ministério da
Educação (situação em que estive no passado durante uns anos); outras como
professor, que fui durante muito tempo: cerca de nove anos no ensino secundário,
dois numa escola do magistério primário, e mais de vinte no ensino superior (politécnico
e universitário), neste último caso como docente, tendo exercido alguns cargos
de gestão.
É verdade que há praticamente catorze
anos estou afastado das lides escolares, mas acredito que apesar das mudanças –
ou, talvez, por causa delas – o meu pensamento não terá perdido a vertente de
coerência que sempre quis manter. Por isso senti-me hoje tentado a pôr por escrito
o que tenho pensado. Previno que o que vou dizer aplica-se quer ao ensino
dispensado pela escola pública quer ao privado. E ainda que não faço qualquer
referência aos alunos que na escola inclusiva (que se deseja) tenham
dificuldades de aprendizagem.
Comecemos pelo princípio. Quando
foi decidido o encerramento das escolas já eu pensava que isso devia ter sido
feito. Se não me engano, a Universidade do Minho terá sido, senão a primeira, uma
das primeiras instituições a fazê-lo, e bem. Nesse momento não me preocupava absolutamente
nada com o que pudesse acontecer no futuro: o importante era, então, impedir uma
situação de contágio fácil e, também, não deixar que crescesse um já evidente
ambiente de receio, quase pânico, que tornaria muito complicado o dia a dia nas
escolas.
O que se seguiu, ainda não muito
claro para mim, pareceu-me ser o seguinte. No ensino superior, onde o ensino a
distância tem vindo a ser ensaiado, terá havido uma resposta positiva, no
sentido de continuar o ano lectivo com uma relativa normalidade. Vale o que
vale, mas tenho conhecimento de que numa instituição universitária, em Lisboa,
uma docente confessou que as suas aulas estavam a correr tão bem que até
parecia que os alunos estavam a corresponder melhor do que nas presenciais.
No que se refere aos ensinos
básico e secundário a situação não poderia ser a mesma. A esse nível, e apesar
de há muitos anos a formação dos professores ter insistido na utilização das
tecnologias no processo de ensino-aprendizagem, passar de aulas presenciais a
ensino a distância não é fácil. Tem havido uma certa informação laudatória
sobre como professores se têm adaptado, mas permito-me ter algum cepticismo.
Acredito que em alguns casos coisas excelentes possam ter acontecido, mas duvido
que tenham sido muitos. Seja como for, passar com um estalar dos dedos de um
sistema presencial para um sistema a distância e ter sucesso seria digno de
figurar no Guiness.
À medida que foram sendo tomadas
medidas restritivas prenunciadoras de que a evolução da pandemia exigiria mais
tempo de recolhimento, o problema do futuro do ano lectivo tornou-se mais complicado.
Nas últimas semanas surgiram declarações diversas e mesmo notícias mais ou
menos oficiais acerca de um possível final de ano em que predominaria um ensino
a distância. Essas notícias foram reforçadas com a difusão de um ”Roteiro” com
a indicação de oito princípios orientadores para a implementação de um ensino a
distância nas escolas. Finalmente, há dias, o Ministro da Educação, em
entrevista à SIC, confirmou existir um plano para utilizar a televisão,
recriando a Telescola, bem como outros meios, para atacar o último período do
ano lectivo. A Telescola?!
Fiquei preocupado. Sempre pensei
que a escola devia aproveitar ao máximo as potencialidades que a tecnologia lhe
está oferecendo, mas sem nunca ousar pôr de parte a mais importante peça do
processo educativo, que é o professor. Nem, também, desprezar aquelas
tecnologias mais pobres mas por vezes indispensáveis – como o quadro preto ou a
velhinha ardósia…. Tenho aguardado um dia em que responsáveis admitam que esse
momento chegou e apresentem um plano com cabeça, tronco e membros que
reestruture a escola em Portugal.
Ora o plano que referi há pouco
não será, certamente, o que o Ministro anunciou. Tal plano não se compadece com
emergências – terá de ser muito bem pensado, desenhado e preparado com quem
tenha de o executar. Por isso, tenho as maiores dúvidas acerca de qualquer
solução que tente colmatar a inexistência de um terceiro período no qual os
alunos continuem sem contacto directo com os seus professores. Directo e
presencial.
Compreendo, no entanto, que nesta
situação excepcional se tenham de tomar medidas excepcionais. Que afectarão
muita gente e nunca poderão obter consensos. Tentemos compreender os pontos essenciais
na situação actual.
Antes de mais: partindo do que
sabemos hoje, e tendo como base o que nos é cautelosamente dito pelas autoridades
da área da saúde, excluo que as escolas possam reabrir em Maio.
Assim sendo, farei a seguinte
análise.
Ponto um: descartemos o ensino
superior, universitário e politécnico. As escolas decidirão como enfrentar as
suas dificuldades, e pelo que se percebeu até agora, fá-lo-ão bem e o ano lectivo
terminará com alguma normalidade.
Ponto dois: ensinos básico e
secundário. Têm, basicamente, o problema comum de o fecho das escolas pôr a nu uma
realidade por vezes esquecida e por vezes propositadamente oculta: o de as
escolas terem também uma função de guarda das crianças (e de algum modo
de alguns adolescentes). O número de pais e mães que estão em casa porque os
filhos não têm escola e que, por isso, não podem trabalhar, será grande (mas não
conheço o número). Acredito que os responsáveis políticos tentem colocar esta realidade
como muito importante no momento da decisão.
Esquecendo esse problema,
dividamos as dificuldades. As crianças em idade pré-escolar terão, em casa, com
as diferenças decorrentes do seu meio social, o acompanhamento possível, e,
para além de privadas da socialização com os colegas e educador(a), o não ter
escola não é mal maior.
Para os alunos do ensino básico a
situação é diferente. Chamou-se a Telescola como hipótese. Mas como? Quem se
lembra daquilo que todos identificavam como Telescola – e uma grande parte da
população mais nova, professores incluídos, não se lembrará – tem a imagem do
C.P. TV (Ciclo Preparatório TV), que mais não era do que a leccionação regular,
ao longo do ano escolar, das disciplinas do currículo do 1º e 2º ano do então
designado ensino preparatório (actuais 5º e 6º anos), com aulas dadas pela
televisão por professores especialmente treinados para o efeito, aulas essas
que eram recebidas em salas onde os alunos contavam com a presença e apoio de
um professor, que era chamado professor-monitor, o qual tinha um pepel predominante
no processo, pois tinha de dar vida à lição vista no aparelho e apreciar as
aprendizagens obtidas (a cada lição correspondia, genericamente, um determinado
trabalho). Ou seja, a Telescola estava organizada para uma turma com um professor
– o que, evidentemente, não pode acontecer agora.
Estou muito curioso em saber o que
se está a pensar fazer que possa verdadeiramente contribuir para que alunos do
ensino básico das diferentes centenas de escolas do país progridam de acordo
com os programas das disciplinas curriculares (e já nem coloco em causa as
experiências de flexibilização, com as quais me congratulei desde o princípio).
Com este cenário, que pensar dos
exames do 9º ano?
Deixemos isso em suspenso e passemos
ao ensino secundário. Bom, aqui temos uma situação à partida delicada: o 12 º
ano e a sua necessidade para acesso ao ensino superior. Estamos perante um
conjunto de alunos cuja maturidade e, espero, motivação, pode fazer a diferença
se lhes forem facultados meios. É porventura possível pensar que sejam
encontrados nas escolas e nos professores as condições para criar um sistema de
ensino a distância muito simples, com base em plataformas existentes (incluindo
contactos telefónicos, e-mail, Skype), e, se as circunstâncias vierem a
permitir, mesmo contactos presenciais.
Isto é, o 12º ano seria a excepção.
Para todos os outros anos do ensino básico e secundário as actividades formais nas
escolas cessariam. Não excluo que informalmente, com o apoio do Ministério ou
sem ele, que cada escola pudesse providenciar actividades a serem desenvolvidas
a partir de propostas de temas interdisciplinares para os quais diferentes elementos
de estudo pudessem ser veiculados a distância – pela televisão, pela Internet –
ou por pesquisa individual dos alunos. Isso, cada conselho de turma deveria
decidir.
Com excepção do 12º ano, não haveria
avaliação em qualquer caso, incluindo o exame do 9º ano. Os alunos matricular-se-iam
em 2020-2021 no ano seguinte ao que frequentavam agora. Porquê? Porque com meio
ano de aulas decorrido, que avaliação segura sustentaria uma decisão? Fazer
perder o ano a todos – isso ocorreu-me – seria justo? E fazê-lo só para alguns,
com base numa avaliação insegura? Seria igualmente justo?
Mas ao fazer transitar toda a
gente, não se corre o risco de no próximo ano faltarem bases para muitos –
eventualmente, todos – os alunos? Em algumas disciplinas, sem dúvida – mas não
estamos nós a testar a flexibilização dos currículos?
Chegado aqui, e sem querer
invocar um argumento de autoridade, lembro que há dias o ex-ministro Marçal Grilo, numa entrevista à
Rádio Renascença (ver aqui a notícia) disse que “não o chocaria” que o ano
lectivo fosse encerrado para todos os alunos, com uma única ressalva, que seria
a de encontrar uma solução para os alunos do 12º ano, para os quais a
aprendizagem a distância poderia ser encarada.
Aqui está o que pensei ao
analisar esta conjuntura difícil, até para mim, que me vejo “confinado” por
largo tempo no meu apartamento…
Post scriptum – Eu sei que
os gramáticos aceitam “ensino à distância” como possível, mas sempre usei, e
continuarei a usar (e gosto de ver que o nosso Ministério da Educação também o
faz) “ensino a distância”. Quando eu digo “a distância” tanto posso pensar no
aluno que vive a 100 metros do meu computador como aquele que está em Braga,
por exemplo, e me segue. Se eu penso “à distância” tenho de me perguntar a que
distancia me refiro… À de 100 metros ou à de 350 quilómetros?
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