2005/05/09

Memórias da II Grande Guerra

Quando a II Grande Guerra começou, eu tinha quase três anos e meio. Não tenho lembranças tão recuadas, embora, por conversas eu tive com os meus pais, situe a minha lembrança mais longínqua precisamente por volta dos três anos: a de uma vacina que tomei no consultório do Dr. Fiadeiro, médico que nos finais dos anos 30 do século XX exercia no Seixal. Foi uma vacina tardia, mesmo para o tempo. Lembro-me de estar sentado numa mesa alta, lembro-me do médico a retalhar a minha coxa direita, e sobretudo lembro-me de um cão preto, enorme, que do lado de fora do consultório, observava a cena. Penso ainda que terei tido muito medo do cão e naturalmente da vacina; isto porque ainda hoje não gosto particularmente de me encontrar com cães desconhecidos e também não gosto de ter de me encontrar com médicos... Nesse quadro de há mais de sessenta anos há também o gradeamento verde que existia a dar mais privacidade ao consultório do Dr. Fiadeiro, que ficava muito perto da igreja da vila.

Mas da guerra, do seu início – nada. Mas já visualizo com nitidez a noite na qual o meu Pai, de acordo com as instruções dadas, colou nas janelas tiras de papel, pôs à porta um balde de areia com uma pá, e apagou todas as luzes: era o “black-out” de prevenção nos tempos da Grande Guerra de 1939-1945. De manhã, foi a surpresa – e disso me recordo com nitidez, também! – o ver pela janela, sobrevoando o braço do rio Tejo que se avistava de casa, muitos balões de barragem. Lembro-me também do racionamento: de haver senhas para comprar bens e de haver falta de manteiga e de azeite, sobretudo… Lembro-me perfeitamente de, algumas vezes, ir com os meus pais e irmãos a Lisboa e estar numa fila, numa loja da Baixa, para comprar manteiga – vendiam uma pequeníssima quantidade por pessoa, mas contavam crianças, pelo que eu era necessário. E muitas vezes a minha Mãe batia as natas do leite para fazer um arremedo de manteiga…

Quando a guerra acabou – está a comemorar-se o sexagésimo aniversário desse evento – eu já era uma criança que espreitava o jornal, que ouvia rádio e seguia as conversas dos adultos. Por isso misturo na minha memória pedaços de conversas preocupadas, diversas alusões ao conflito, figuras dos mapas com muitas setas que O Século publicava, e também algumas imagens que via no cinema, nos jornais de actualidades que precediam o filme principal. Para os mais novos que me lêem, nesses tempos qualquer ser humano, fosse qual fosse a idade, era autorizado a ir ao cinema, nem que fosse para dormir ao colo da mãe ou para fazer uma berraria coroada de valentes “schius” da restante assistência. Lembro-me também de um calendário na parede da cozinha cujo motivo era um soldado, fardado a rigor, com uma espingarda (ou metralhadora) na mão, em pose de guarda. E finalmente, lembro-me da alegria do “acabou a guerra!”, das manifestações que houve em toda a parte – e no Seixal também.

Posso pois dizer que a guerra não perturbou demasiado a minha infância: talvez nunca tenha percebido, na altura, o que estava verdadeiramente em jogo. Só mais tarde compreendi o que foram esses anos da guerra, que só sofremos lateralmente, é verdade, não sei se para nosso bem se para nosso mal. Contudo, nunca foi um facto histórico que me tivesse apetecido estudar com mais profundidade nos seus episódios – preocupei-me sempre muito mais com os aspectos ideológicos que marcaram o seu início e com as reacções dos países que na guerra se envolveram.

Sessenta anos passados a Europa mudou a face, e apesar de todo o “euro-cepticismo” que existe espalhado no velho continente, eu saúdo essa mudança: só a união de países diferentes que querem todavia ser solidários entre si pode prevenir tentações como as que levaram à guerra de 39-45.

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