2005/04/12

A covardia dos intelectuais – vamos mudar o curso da História?


Em posts anteriores tenho manifestado discordâncias com o teor dos artigos de Maria Filomena Mónica (MFM), dada a sua verrina contra não sei bem se as ciências da educação se com os que a elas se dedicam. O artigo “A Covardia dos Intelectuais”, publicado no Mil Folhas de sábado passado e que confesso só li depois de alertado na minha visita a blogs amigos, merece uma análise um pouco diferente.

Em primeiro lugar porque estou de acordo com ela em vários aspectos – o que me deixa satisfeito, porque me cauciona uma certa isenção… Em segundo lugar porque o tema é, na verdade, muito interessante.

Vamos aos acordos. MFM refere Lyotard, eu refiro Fred Keller e o seu célebre artigo “Good-bye, Teacher”, publicado no Journal of Applied Behavior Analysis em 1968 (com perspectivas diferentes, claro). Como ela, eu penso que o professor é insubstituível sejam quais forem os progressos tecnológicos, tal como penso que “o que nos marca para a vida é a personalidade de um professor”.

Em segundo lugar (surprise! surprise!) eu também defendo que a Universidade deve ser elitista (embora num conceito de elite um pouco alargado, porque uma elite em rigor não pode ser muito numerosa). (Vamos ver o que me acontece…) Na Universidade não deve haver lugar para a mediocridade, sejam quais forem as suas causas: só não gostaria de chamar “estúpidos”, como MFM faz, aos que não conseguem intelectualmente atingir o nível de exigência dos estudos superiores, mas na verdade esses, bem como os que simplesmente não querem estudar, não deveriam ser admitidos.

Ainda um ponto comum: também me penaliza a ideia de que as aprendizagens no ensino superior universitário tenham de ter sempre uma finalidade utilitária, não dando margem ao aprender por aprender (e como eu estudei e ensinei Filosofia sinto-me perfeitamente à vontade para escrever isto).

E aqui acabam as convergências no que se refere à escola. Para mim a escola básica, universal, tem de ser para todos e a todos tentar integrar socialmente com os conhecimentos (e competências…) aceitáveis para o nível considerado (no nosso caso, actualmente, o 9º ano). Numa escola que se consiga organizar como deve, a flexibilidade curricular encontrará os meios para permitir a convivência de alunos com graus de desenvolvimento diferentes sem recorrer aos chamados “currículos alternativos” (uma triste invenção nacional até no termo escolhido). Mas chegado ao fim dessa escolaridade, deve haver selecção, e séria (já no acesso ao secundário). O problema da condição social ou foi resolvido antes ou terá, infelizmente, de não ser aqui considerado.

Contudo, nós não podemos mudar o curso da história. Os estudantes de hoje não são iguais a mim e a MFM quando tínhamos a idade deles. Podemos achar que é pena que em vez de se ir mais vezes ao cinema se frequentem discotecas, que em vez de longas conversas à mesa do café se prefiram salas de “chat” na Internet ou ainda em vez de passar horas em bibliotecas treinarem-se intensamente em jogos de computador. Mas a verdade é que os computadores existem e é bem mais sábio conviver com eles do que lutar contra eles.

Eu estava a acabar o meu curso na Faculdade quando a RTP começou a emitir a sua programação. Não sei pois o que é ser estudante (enquanto moço) tendo a televisão como distracção. Mas ela existe hoje, com programas maioritariamente idiotas.

O mundo mudou e com ele os enfoques culturais (e é verdade, MFM tem razão, porventura muitos dos sociólogos críticos foram, são responsáveis por uma espécie de niilismo cultural onde há uma verdadeira confusão de valores; e o mesmo se passou com as chamadas “pedagogias revolucionárias” que proliferaram e proliferam e que não têm nada a ver com a ideia de educação que defendo). Mas não vale a pena lutar contra moinhos de vento se não possuirmos bulldozers.

Nos últimos três anos, e penso que para o ano vou repetir a experiência, dei aulas a alunos de mestrado numa disciplina intitulada “Currículo e Cultura” e tive oportunidade de conviver com estudantes das áreas das expressões artísticas – música e educação visual e plástica. Eu sei que para um mestrado as condições de admissão são relativamente exigentes, mas os meus alunos estavam longe de ser “ignorantes” e alguns deles foram mesmo excepcionais na sua área de competência. Procurei fazê-los pensar sobre o papel da escola como agente de cultura, partindo da sua formação artística, tendo como realidade a pós-modernidade em que vivemos, com os problemas levantados pelas relações multiculturais. Porque esta é a realidade. Facilitei? Em meu entendimento, não; mas também devo dizer que me repugna, por natureza, não tornar acessível o que pode ser tornado acessível. Penso, mesmo, que uma das maiores qualidades de um professor é a clareza da sua exposição, quando tem de expor, sem sacrificar, claro, a mensagem que transmite.

Ao responder assim ao desafio que representa, para um professor universitário, ademais na área de ciências da educação, confrontar os seus estudantes com um conjunto de problemas que relevam da organização curricular em áreas consideradas essencialmente áreas de cultura, tentei sobretudo criar condições para que eles (e elas) se questionassem e às suas práticas (a maioria ensinava). O blog que criámos (nos dois últimos cursos) ajudou muito (se a tecnologia existe, por que não usá-la?), mas creio que não me substituiu…

Não tenho, noutras instâncias, sido covarde (na lógica de MFM)? Provavelmente, sim, tenho facilitado, em circunstâncias claramente delimitadas por uma lógica que me ultrapassa mas tenho de compreender, por derivar de decisões políticas geral com as quais não concordo mas não tenho autoridade moral para contestar (dito deste modo pode parecer hermético mas será melhor que fique assim).

Ainda queria referir, para terminar, e porque MFM referiu o contexto internacional, que pelo menos nos EUA, que conheci bem, fiquei com a ideia que só ao nível das pós-graduações começa a funcionar a “elitização”: a própria Universidade é relativamente branda a formar os “bachelors” e só nos cursos de mestrado e doutoramento introduz mais exigência. Não será inelutável que isso aconteça também aqui?

Penso que para um post é prosa demais, mas para continuar a discussão já deve ter matéria bastante…

12 comentários:

Anónimo disse...

"Em segundo lugar (surprise! surprise!) eu também defendo que a Universidade deve ser elitista (embora num conceito de elite um pouco alargado, porque uma elite em rigor não pode ser muito numerosa). (Vamos ver o que me acontece…) Na Universidade não deve haver lugar para a mediocridade, sejam quais forem as suas causas: só não gostaria de chamar “estúpidos”, como MFM faz, aos que não conseguem intelectualmente atingir o nível de exigência dos estudos superiores, mas na verdade esses, bem como os que simplesmente não querem estudar, não deveriam ser admitidos."

Na faculdade na qual trabalho existem 45 docentes que passaram à situação de assistentes convidados porque não concluíram o seu doutoramento dentro dos prazos previstos pelo ECDU. Conheço inúmeros professores que, após o seu doutoramento, não realizaram mais uma única investigação. Conheço um caso de um professor que reprovou no nosso país nas suas provas de doutoramento e que actualmente é professor catedrático. Não terá chegado a altura de aplicarmos essa sua noção de elitismo que, tal qual a compreendo, me identifico no essencial, aos docentes universitários?

PJ

Chris Kimsey disse...

A(s) questão(ões) é(são) pertinente(s). Concordo que a Universidade deve formar elites e, neste sentido, ser elitista. Deve-o ser também porque todas as sociedades devem ter as suas elites (no sentido intelectual... e pedagógico mas não económico). Mas, perante um discurso (e uma prática) de democratização no acesso e no sucesso à/na Universiade como pode ela ser elitista? É que se abre a imensos públicos não pode esperar que entrem só as elites. E pode ter alguma razão em, nas actuais condições, recusar ser ela exclusivamente a produtora de elites, embora se deva esforçar por isso. E, como bem referem PJ e DK, o elitismo, entendido também como esforço, exigência e propagação dos mesmos não podem ser só dos alunos... quando a Universidade admite alunos com 9,5 e/ou notas inferiores a certas disciplinas está a passar uma mensagem de elitismo?

Paulo Lopes
(voltarei...)

Miguel Pinto disse...

E se questionarmos o dogma “Universidade elitista”? Fará algum sentido reconceptualizar a Universidade?

Cândido M. Varela de Freitas disse...

Esperei até à noite para ver se tinha mais algumas reacções que me permitissem uma resposta conjunta. Agradeço aos quatro a visita e a reacção. Ora bem, quando eu escrevi “[n]a Universidade não deve haver lugar para a mediocridade” estava naturalmente englobando todos os que nela trabalham para além dos alunos – incluindo técnicos, administrativos e, claro, docentes. Não é suposto que os docentes universitários não sejam medíocres? Eu bem sei que qualquer um de nós “sabe” de um caso, ou dois, ou três, que foge a essa regra (mas também lhes digo, com conhecimento de causa, que não é só em Portugal). Mas um bom professor será assim tão excepcional como a DK sugere? A qualidade de um docente não é fácil de avaliar. Mas não elaboraria mais sobre esse tema, que pode ficar para um outro post. Na verdade, a análise ao artigo da MFM punha em causa a cobardia e não a competência (aludiu a isso tangencialmente) e foi nessa base que comentei o artigo.
Quanto à ideia do Paulo Lopes e do Miguel de a Universidade poder pôr de lado o elitismo eu deixei uma pista: afrouxar as exigências à entrada (o que já se está a fazer!) e apertá-las mais tarde, como no fundo se faz nos Estados Unidos da América. Eu até penso que caminharemos nessa direcção, mas tenho receio pelo futuro dada a nossa fragilidade em termos de competição com outros centros. Bolonha pode, aí, ter efeitos positivos mas também os pode ter nefastos.
O conceito de Universidade está associado ao conceito de excelência e em meu entender será sempre negativo facilitar para além do razoável. A democratização do ensino deve consistir na promoção de condições para uma igualdade de oportunidades; haverá quem as aproveite, e quem não as aproveite.
É evidente que tudo isto pode discutir-se, e ter ideias diferentes é bom para não se cair em unanimismos cinzentos.

Chris Kimsey disse...

Nunca sugeri a Universidade pôr de lado o elitismo...

Anónimo disse...

Só hoje tive a oportunidade de ler o artigo de Maria Filomena Mónica (MFM). Chamava a atenção para dois pormenores que julgo não serem irrelevantes. Escreve MFM: “Em vez de analisarmos a forma como a origem social determina o acesso às universidades – o único estudo sobre o tema, feito em Portugal, tem mais de 40 anos – os intelectuais nacionais (…) negam, à partida, a concepção meritocrática da instituição.” Para MFM o ensino politécnico parece não fazer parte do ensino superior. Sistematicamente, nos seus escritos, ensino superior é referido como ensino universitário. Julgo que para MFM os cursos politécnicos não são bem cursos do ensino superior. São uma “coisa”…
Em segundo lugar, o excerto que reproduzi traduz uma lacuna que não julgava possível em alguém que costuma fazer incursões na área da sociologia da educação e que integra o corpo de investigadores do Instituto de Ciências Sociais. Julgo que o estudo com mais de 40 anos que MFM refere é o de Adérito Sedas Nunes publicado em 1968, na Análise Social, A população universitária portuguesa: uma análise preliminar. Ora, em finais de 2001, foi publicado em livro o estudo Perfil dos estudantes do ensino superior: desigualdades e diferenciação, por encomenda do Conselho Nacional para a Acção Social no Ensino Superior. Nesta investigação analisa-se pormenorizadamente a situação socioeconómica da população estudantil do ensino superior em Portugal. Para quem é sempre tão lesta nas suas acusações de ignorância, é para mim um pouco paradoxal que MFM não refira este estudo mais recente.

PJ

Anónimo disse...

"Não é suposto que os docentes universitários não sejam medíocres? Eu bem sei que qualquer um de nós "sabe" de um caso, ou dois, ou três, que foge a essa regra (...)."

Meu caro Professor:

Não são dois ou três casos que cada um de nós conhece. São muitos! Foi por isso que indiquei o número de 45 docentes que, numa única faculdade, passaram à condição de professores convidados sem terem concluído as teses de doutoramento a que, por lei, se encontram obrigados. 45!! E isto quando existem cada vez mais jovens doutorandos e doutorados que não conseguem ingressar na carreira académica. E o que dizer dos docentes do ensino politécnico que chegam a ser perseguidos pelo facto de tentarem obter o grau de doutor e, quando o conseguem, são impedidos de participar nos órgãos científicos das instituições numa violação aberrante da lei? Quem dera que fossem dois ou três...

PJ

saltapocinhas disse...

As universidades devem ser elitistas: não podem, nem devem lá entrar todos... O problema está no tipo de elitismo. A exigência devia estar na capacidade dos alunos e não na carteira dos papás: vai para a universidade quem tem dinheiro e não quem tem capacidade para fazer um curso superior. Conheço gente que entrou com o meu filho e que ainda lá anda ( o meu filho acabou o curso em 2001 com 23 anos).
Acho que aqui cabia um papel imporatnte às universidades que deviam ter mecanismos de tirar de lá estes alunos para dar lugar aos que realmente querem estudar.
E pronto, graças a mim tens aqui uma opinião "popular"

Miguel Pinto disse...

A saltapocinhas tocou num aspecto que me parece central nesta discussão. A necessidade de trazer os problemas das elites a montante da universidade.
É reconhecido o papel da escola meritocrática na democratização do acesso à escola. O grande problema é que além do acesso a escola meritocrática não foi capaz de garantir o sucesso de todos os alunos nesta mesma escola. E a exclusão social que deriva desta escola tem de ser acompanhada de um reforço da defesa de um princípio da igualdade de oportunidades [esta posição é, aliás, defendida pelo A. Magalhães e Stoer]. Esta é a grande hipocrisia: as formas clássicas de aprendizagem assentes na transmissão de saberes não satisfazem as necessidades de todos os alunos.

Cândido M. Varela de Freitas disse...

Rapidamente: estamos a ir para um problema que de facto é central e recorrente. A escola tem fins sociais mas não pode por si só resolver problemas sociais. Uma das minhas lutas internas, enquanto pessoa do curriculo, é entre o achar que sociólogos ou quase-sociólogos como Apple ou Giroux têm razão mas não lhes poder dar crédito face à realidade que é a nossa. Porque se o problema fosse resolivod não havia necessidade de Apples e Giroux... (Peço desculpa se não fui claro, mas tenho alguma pressa neste momento). Voltarei, aqui ou num outro post.

À Saltapocinhas:
Popular? O que é isso, colega?

TA disse...

Concordo absolutamente com o elitismo na universidade. Quando se vêem alunos a frequentar estabelecimentos de ensino (privados/públicos) com notas inferiores a 9,5 pergunto o que é que vão para lá fazer?

Outra das coisas que me faz confusão é haver alunos que levam cerca de oito a dez anos a concluirem um curso superior, especialmente quando usam artimanhas associativistas (membro da associação de estudantes, etc.) e ninguém os tirar de lá, para entrar quem realmente quer estudar.

Mas esta vontade extrema pela "democratização" do ensino superior vem desde há muito tempo, quando o "canudo" era acessível só a "ricos" e era garantia de excelente emprego. Ainda hoje muitos pais "pressionam" os filhos a irem para o ensino superior, independemente do curso, vontade etc. É esta a ideia que se tem de desmistificar: um curso não significa necessariamente estatuto social ou empregabilidade!

Cândido M. Varela de Freitas disse...

A TA

Concordo com o que diz. Compreendo que se queira ter um curso superior, mas a verdade é que cada vez mais se torna difícil empregar todos os que o conseguem na área que escolheram. E se isso em si não é um mal (apesar de tudo, frequentar a Universidade ou o Politécnico tem retornos culturais importantes) é naturalmente frustrante para quem teve expectativas e depois não as concretiza.