2015/11/19

Segurança e insegurança face ao terrorismo



A segurança na Europa depois do atentado em Paris fez-me reviver uma experiência de há mais de quarenta anos. É que terror na Europa, já houve – e em diversas ocasiões.

Em Julho de 1973 participei, com mais seis colegas portugueses, professores dos ensinos preparatório (designação do tempo, 5º e 6º anos) e secundário, numa conferência organizada pela OCDE com o tema “School-based curriculum development”, a qual decorreu na Universidade de Coleraine, na Irlanda do Norte. Nessa altura, a Irlanda do Norte era um lugar complicado para viajar: a instabilidade provocada pelo IRA (Irish Republicain Army) estava ao rubro, com atentados constantes. Como é sabido, era no fundo uma guerra religiosa, católicos contra protestantes.

Na viagem para Belfast, via Londres, na British Airways, comecei a sentir os efeitos da instabilidade. Não havia o rigor que há hoje em relação a passageiros, mas a revista da minha pasta em Heathrow foi à minúcia de abrir a bolsa do cachimbo (podia lá ter um revólver…). Mas mais sério foi quando aterrámos. Como estava à janela numa das filas do lado esquerdo do avião, vi aproximarem-se, em passo acelerado, duas filas de soldados, de arma em riste, que formaram uma ala junto à escada, por onde passámos na saída, em relativo desconforto, em direcção à sala de entrega de bagagens.

Nós íamos ser alojados em Portrush, uma estância balnear a uns dez quilómetros de Coleraine. Estavam à nossa espera dois carros que nos iriam levar de Belfast a Portrush. Era no fim do dia, mas em Julho as noites começam tarde naquela zona, por isso tivemos oportunidade de perceber que ao longo da estrada havia muitos sinais de que levavam a sério a possibilidade de qualquer ataque. De vez em vez, havia um bloqueio, com soldados a querer revistar o carro. Não nessa vez, mas noutra ocasião pedirem mesmo as identificações dos passageiros. Na rua principal de Portrush não se podia estacionar; de 3 em 3 metros havia bidons que o impediam, a fim de evitar os carros armadilhados.

Na abertura da Conferência, as primeiras palavras (encorajadoras…) foram para avisar que se soasse um sinal de alarme deveríamos em primeiro lugar deitar-nos do chão. E, nas viagens de autocarro que fazíamos diariamente percebíamos sempre que se procurava antecipar qualquer surpresa. Um exemplo: no fim-de-semana sem actividades, foi-nos oferecido um passeio, para o qual foi distribuído um itinerário. Mas na altura, já no autocarro, foi-nos comunicado que iríamos seguir um itinerário diferente, evidente manobra de despiste.

Vou referir apenas mais duas notas dessa viagem. Na altura, a localidade mais afectada pelos terroristas era Londonderry, que distava uns quarenta quilómetros de Portrush. Tínhamos travado relações amigáveis com o director da escola secundária de Londonderry, e ele, a dada altura, convidou-me, e ao Helder Pacheco (exactamente, o notável portuense, ao tempo professor numa escola da sua cidade e que, com sua Mulher, apresentou uma interessante exposição de trabalhos realizados pelos seus alunos e que foi muito bem recebida por todos), a ir até à sua cidade para ver in loco o que se passava. Além de nós dois foi também outro participante cuja nacionalidade e nome me escapam.

 A escola ficava fora do perímetro da cidade, num local aprazível. A simpatia do director foi ao ponto de nos oferecer de jantar e, depois, descemos para o centro. Ainda hoje tenho presentes as imagens e as emoções desse fim de tarde. Os carros não podiam circular, por isso o carro teve de estacionar num local relativamente afastado e fizemos o percurso a pé. Bom: a rua principal tinha todos os prédios numa semi-ruína; a única coisa que possuíam era fachada. Lembrava as imagens que tínhamos dos edifícios de Londres depois dos bombardeamentos alemães.

A dada altura, começámos a ouvir passos de corrida e do nada apareceu uma brigada de soldados, armados, a fazer-nos sinal para nos afastarmos. O anfitrião sugeriu que deveriam estar à procura de alguns membros do IRA refugidos perto. E desandámos, claro… Confesso que nesse momento tive medo.

A nota final: numa segunda-feira, um participante que vinha de Belfast contava aos amigos que no domingo a sua secretária tinha morrido vítima de um ataque bombista. E dizia isso demonstrando um mínimo de emoção, como se se tratasse de um “fait divers”.

Percebi então, juntando tudo o que já vira – e o que haveria de ver – que mesmo numa situação de insegurança a continuidade necessária da vida gera habituação. Apesar de estarem em constante alerta, as pessoas criam uma espécie de carapaça e são capazes de reagir portando-se como sempre. Não ouvi muitos queixumes. Genericamente, as pessoas comportavam-se como se tudo fosse normal. Numa festa do hotel, os irlandeses riram, dançaram, fizeram inclusivamente humor com a situação.

Eu próprio, à medida que o tempo passava, me fui habituando e quase esquecendo o insólito de estar a viver numa zona de guerra. O que não quer dizer que, quando ao fim das duas semanas regressei a Londres (e fiquei lá mais uma semana), não me sentisse bem mais seguro.


À margem da mensagem principal deste post, uma referência para a importância que a conferência de Coleraine teve na minha vida profissional: ela marcou, decididamente, a minha orientação para o estudo do currículo como factor dominante na educação.

2015/11/14

Ressentimento e tolerância


Há dias escrevi um post sobre o ressentimento, que para mim explica muito do que se está a passar em Portugal face ao rumo que a situação política tomou depois das eleições de 4 de Outubro. No fundo, as duas forças políticas com maior apoio nacional têm (objectivamente) razões de queixa mútuas. E, não as esquecendo, avolumam-nas quando em dificuldades ou, pelo contrário, quando estão “na mó de cima”, como popularmente se diz.

O mais curioso é que a história dos ressentimentos, contada por cada uma das tais forças políticas, aparece aos olhos dos seus apoiantes como a correcta, sendo muito difícil alguém ser neutro na apreciação. Não me coloco de fora: eu também julgo que a possível “narrativa” da força em que eu acredito é a que tem mais suporte.

Mas isso não significa que o meu ressentimento me retire o que eu considero complemento indispensável numa democracia, a tolerância. Por isso, embora eu não concorde com muita coisa que está a acontecer e que merece, aliás, ser evidenciada e combatida (até porque a democracia assim o exige), tempero meu desacordo com a dose necessária de tolerância. Escuso-me neste momento a exemplificar.

Mas neste discurso da tolerância intrometem-se as imagens que ontem todos vimos provenientes de Paris, e que lembram as muito diferentes, mais trágicas, vindas de New York em Setembro de 2001. Tal como nessa altura, a minha revolta eliminou a tolerância. E se posso compreender o ressentimento por parte do Islão, a resposta dada elimina qualquer tolerância. Tenho se concordar com o Presidente francês, os ataques são acto de guerra (mas a França já não estava em guerra?). Eu não sei como é possível concertar esta complexa situação que opõe dois mundos tão diferentes.

E dei por mim a pensar em como a nossa caseira desavença é coisa pouca comparada com a desavença desses dois mundos.


2015/11/13

Bloco doce


Em Nápoles, fui surpreendido ao pequeno almoço com os envólucros de açúcar da Doreca que aqui reproduzo, Isto foi o ano passado. Casualmente reencontrei um que guardei  como memória não particularmente de um insólito, mas de uma curiosidade. E lembrei-me de o divulgar - agora que o Bloco adoçou.



2015/11/10

Reflectindo sobre educação (I)


Ninguém estranhará que alguém que durante quarenta e sete anos foi professor (por vezes com outras funções ligadas à educação, em sentido lato) considere que a educação é um problema central da sociedade. Não digo o, digo um, porque há na verdade outros problemas cruciais, como a saúde. Esta ideia da importância da educação é no entanto generalizada. Ela está presente na família, o primeiro agente educador, e prolonga-se quando se percebe que são necessários outros meios para alargar as aprendizagens necessárias para vencer na vida.

Pondo de parte qualquer análise à história da educação, consideremos o quadro actual, que estabelece que a educação é uma das funções do Estado, o que implica, desde logo, que exista por parte desse Estado a definição de uma política educativa. No caso português, embora a Constituição estabeleça que “[o] Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (nº 2 do artº 43º), é evidente que o sistema educativo reflecte uma determinada orientação, necessariamente política. A Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei nº 46/86, de 14 de Outubro) estabelece orientações nesse sentido.

Será do entendimento geral que tal política educativa deva ter o maior consenso possível, fugindo a criar situações que possam ser discutíveis, o que naturalmente não é fácil de alcançar. Devo no entanto dizer, desde já, que entre nós, após o 25 de Abril e até há relativamente pouco tempo, houve um razoável consenso (razoável, não total, o que se compreende) acerca dos princípios gerais da educação. As discordâncias começaram a notar-se de 2002 em diante, com David Justino e Maria de Lurdes Rodrigues a divergir e Nunco Crato a destruir.

Uma das razões para a existência de consenso é o próprio termo educação. Muitas vezes refere-se educação quando se deveria dizer instrução. E pensar em educação ou em instrução numa escola faz toda a diferença. Educar tem uma abrangência que permite encarar o desenvolvimento da criança (ou adolescente, ou mesmo adulto) considerando todas as vivências em que se envolverá, e por isso a arte em geral, o desporto, a participação na vida da comunidade, não devem deixar de fazer parte do currículo. Instruir tem como finalidade promover aprendizagens específicas que permanecerão e permitirão o seu desenvolvimento numa determinada área do saber. Uma escola completa encarará estes dois aspectos como fundamentais.

A par da definição de uma política educativa existem outros pontos de grande importância no desenvolvimento da educação. Como é que a escola e os professores concretizam o que foi estabelecido? Tal concretização é aquilo que, no léxico educativo (não confundir com o célebre “eduquês” do ministro Nuno Crato de má memória) se designa por “desenvolvimento curricular”. Dito brevemente, tudo o que a escola oferece aos seus alunos é currículo.

São os alunos a razão de ser da escola e são, também, o seu maior desafio. Embora toda a gente saiba que não há duas crianças iguais, que os seus estados de desenvolvimento variam, que há “slow learners” e “fast learners”, na maior parte das vezes escolas e professores agem como se estivessem perante um grupo homogéneo, não respeitando nem ritmos de aprendizagem nem outras diferenças de personalidade. Dir-me-ão: e é possível ser de outro modo? A resposta é: é possível, mas não é fácil e pode acontecer que muitas vezes os resultados fiquem aquém do esperado.

É que estamos, claramente, a abordar um “tema problema” em educação/instrução: até que ponto a educação, por si e sustentada por ciências como a psicologia e a sociologia, consegue ser… científica?

Posto nestes termos, será difícil sustentar que há uma base científica segura na construção de um processo educativo. Aliás, não é o que acontece com todas as áreas em que o homem é objecto de estudo enquanto ser racional? Por exemplo, não é o que se passa com a economia (de economia, percebo pouco, por isso, se me quiserem contradizer, é favor)?

Mas uma coisa é não haver base segura e outra é existirem investigações muito sérias que permitem conclusões em aspectos bem definidos nas diversas áreas da educação, com realce para aquelas que têm a ver com os processos de ensino-aprendizagem. No entanto, essas conclusões nunca podem ser apresentadas como podem sê-lo as que se desenvolvem em laboratório pelas chamadas ciências exactas.

A assunção desta realidade não impede que haja divergências de pensamento, mas pode ajudar a tomada de decisões. Pelo facto de ter estudado em Inglaterra e nos Estados Unidos sigo (embora hoje menos do que num passado recente) o que se passa nesses países, que têm certamente os melhores centros de investigação em educação do mundo. Ocorrem neste momento debates calorosos, quer sobre as “charter schools” quer sobre o valor dos testes e a sua influência no desempenho dos professores. Devíamos ter em atenção esses debates pensando no nosso caso, embora não defenda que copiemos modelos por copiar modelos.

Continuarei em próxima entrada.


2015/10/27

A cadeia do ressentimento

Infelizmente, não consigo ser totalmente isento em relação a muitas coisas. Eu bem me esforço, posso andar perto, mas há sempre uma falha. Querem um exemplo? Recente? Pois bem, admito que o Sporting ganhou bem ao Benfica, que não há discussão sobre isso. Mas não deixo de pensar que se o árbitro, antes do primeiro golo do Sporting, tem assinalado aquela grande penalidade sobre o Luisão, quem sabe se o jogo não teria sido outro? O Benfica até estava a jogar bem, nessa altura…

Se não sou isento em relação ao futebol, posso sê-lo em relação à política? Ora eu penso que nem eu nem praticamente ninguém (ou alguém?). O que tenho visto, lido e ouvido sobre a actual situação pós eleitoral demonstra à saciedade a falta de isenção na análise. E eu creio que isso deriva do que eu chamo a cadeia dos ressentimentos. A tendência para argumentar com base no passado origina uma catadupa de memórias nas quais é sempre possível encontrar um presumível culpado de uma situação que, embora apenas remotamente tenha ligação com o que se passa hoje, gera o contraditório de uma outra situação semelhante invocada pela parte oposta.
Ontem, ao ver o “Prós e Contras”, confirmei essa cadeia de ressentimentos. É evidente para mim que Cavaco Silva foi o principal responsável pela “crispação” na Assembleia (já agora, penso que é uma opinião maioritária). Por outro lado, concordo que Ferro Rodrigues poderia ter feito um outro discurso de posse. Mas compreendo que, ressentido com a posição do presidente em relação a deputados da Assembleia, ele não resistisse a uma resposta.

Um pouco marginalmente, devo declarar que não sou mesmo isento em relação a Cavaco Silva. Há mais ou menos dez anos, não posso precisar quando, mas em tempos próximos da eleição presidencial de 2006, num almoço no Restaurante Panorâmico de Gualtar com o Luís e o Fernando Alexandre, fui tão impressivamente contra a candidatura de Cavaco Silva que o Fernando teve o seguinte comentário: “Caramba (não estou certo que tenha mesmo dito “caramba”) você não gosta mesmo do homem!” E lembro-me de ter redarguido que isso acontecia desde aquela sua célebre afirmação, quando primeiro-ministro, de que raramente tinha dúvidas e nunca se enganava. Na altura, veio-me de imediato à memória o que outro iluminado dissera: “Sei muito bem o que quero e para onde vou”. Escuso de recordar quem era.

Eu não estou contente com o rumo que as coisas estão a tomar. Vejo difícil, com os actuais protagonistas, que exista sensatez para aceitar sem guerrilha mudanças – e elas terão de existir, e, penso, muito rapidamente. Primeiro, teriam de se eliminar ressentimentos: e é tão difícil…

Como não sou mais do que um cidadão interessado na “res publica” e não um político, fico-me por aqui. Até porque tenho na forja uma entrada mais sobre educação, que é onde me sinto mais à vontade…