Há quarenta e sete dias que não
saía de casa. Saí hoje, uma vez que disciplinadamente me foi permitido fazê-lo:
fui desconfinado! Não o digo com azedume. Compreendi muito bem que o que me
pediam tinha fundamento e abdiquei, com pena mas sem esforço, do hábito que há uns
três anos criara de caminhar, todos os dias, perto de cinco quilómetros. Isto a
bem da minha saúde futura. Porque, apesar dos meus 84 anos, continuo a pensar
que tenho futuro. É evidente que eu sou um privilegiado: estou na minha casa,
suficientemente ampla e confortável, com todos os meios de comunicação
actualmente disponíveis, com a minha Mulher, e com a assistência da Filha que,
embora a distância, continua diariamente connosco, partilhando até, via Skype,
as refeições festivas das datas que calharam neste tempo esquisito, os dias do
Pai e da Mãe e o dia dos meus anos. Penso muitas vezes em quem não tem esta
sorte, os que vivem em lares ou sozinhos, sem família, em condições precárias.
Reconheço a dificuldade em tentar resolver o problema, mas esse teria de ter tido,
porventura, maior atenção.
Tenho lido, e ouvido, opiniões
diversas sobre a situação dos velhos nesta pandemia. (Velhos, por que não? Tal
como nunca troquei a palavra cego por invisual, não irei usar idoso por velho).
Desde que o general Ramalho Eanes recusou o potencial ventilador para o ceder a
um jovem, caso lhe acontecesse adoecer com o Covid-19, algumas vozes levantaram
a questão: o que vale a vida de um velho (face aos mais novos, e, até, face à situação
económica)?
Não terei pensado nisso muitas vezes,
mas quando era jovem e mesmo numa idade madura nunca me terá passado pela cabeça
que chegaria aos 84 anos. Em dois momentos da minha vida estive gravemente
doente – e sobrevivi. Há 20 anos tive um desastre de automóvel e saí ileso:
disse, na altura, que a partir desse momento estava a viver em tempo emprestado.
Mas continuei em frente, rumo ao futuro.
Vivo, agora, como todos nós, esta
experiência estranha de estar no meio de uma pandemia. Agrada-me que o Estado,
em quem sempre confio, nos proteja definindo as regras que quem competentemente
aconselhou. Agrada-me que especificamente proteja os de mais idade ou vulneráveis
por outros motivos.
Semanas antes de se ter consciência
do vírus, discutiu-se com vigor o tema eutanásia. De um momento para o outro,
deixou de ser tema. Para, curiosamente, aparecerem (mais ou menos veladamente)
opiniões que, depuradas de “ses” e de “pois”, poderiam traduzir-se por isto:
deixem lá os velhotes morrer, já não fazem falta, e confiná-los (porque são muitos)
arruína a economia. Ou seja, a proposta de uma eutanásia a favor da economia!
Talvez eu não esteja a ver bem.
Mas, após ter sido desconfinado, passei à situação de desconfiado. Eu saí hoje,
para, em vez de andar cinco quilómetros, andar apenas dois e meio. E o
sentimento que me tomou foi estranho. Nas ruas, para além das máscaras que nem
todos usam, as pessoas ao cruzar-se tentam o mais possível criar distância. É:
as pessoas, mesmo as mais jovens (nem todas, claro), estão desconfiadas.
Não seria melhor continuar em
casa? Eu até acho que sim, mas pensando bem, se continuarmos a ter alguns
cuidados, até pode acontecer que a ansiada vacina apareça mais cedo do que se
pensa. E eu tinha mesmo de sair: a primeira coisa que fiz foi procurar no
barbeiro mais próximo quando era possível cortar o cabelo. Ele é pouco, mas
está um caos!
1 comentário:
Que maravilhosa reflexão.
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