Recém-chegado ao mundo dos blogs, tenho verificado que este é um tema que aparece com frequência, tratado com maior ou menor profundidade. Não é um tema de abordagem fácil. É fácil dar uma opinião – fundamentá-la é bem mais complicado.
Que os professores do ensino universitário devam ser avaliados parece-me que não é discutível (aliás, qualquer professor deve ser avaliado). Quais os parâmetros pelos quais se deve definir essa avaliação? Para responder a esta questão, teremos de ir procurar os referenciais da profissão de modo a deles extrair os indicadores que permitam a análise.
Um professor universitário ensina (isto é, lecciona disciplinas em situações até agora claramente delimitadas – aulas teóricas, teórico-práticas, práticas, seminários) o que corresponde a uma área pedagógica; investiga (na sua área de especialização) o que corresponde a uma área científica; orienta alunos (na preparação para a obtenção de graus académicos e na investigação) o que cai nas duas áreas; e espera-se que se envolva em projectos de extensão da Universidade ao meio, o que em rigor pouca gente repara.
Uma avaliação total do professor deve pois ter em conta todos estes domínios e saber “pesá-los” no contexto profissional. E é aqui que começam as dificuldades.
Qual o domínio mais influente? Penso que para a maior parte das pessoas a vertente ensino deveria ser a mais valorizada (as queixas contra os “maus” professores são frequentes e explícitas). Para muitos universitários será a vertente investigação que deverá ter prioridade.
Outra questão: quem deve avaliar? Alunos? Os pares? A hierarquia? Avaliadores externos?
Como se tem feito até agora?
A verdade é que o que se tem feito nada tem a ver com a avaliação dos professores enquanto tal. O nosso sistema, sancionado pelo ECDU, prevê mecanismos (a palavra é bem aplicada, mecanismos) através dos quais os professores sobem degraus e, com alguma legitimidade, se pensa que para os franquear foram avaliados. Assim um doutoramento vale o ser-se logo após professor auxiliar, se se está na carreira como assistente, e mais tarde dois concursos permitem a passagem a professor associado e a catedrático. Um doutoramento prova capacidade científica – uma tese de doutoramento requer o desenvolvimento de uma investigação bem documentada e corresponde a uma espécie de certificado para continuar a exercer o ofício de investigador. Um doutoramento nada prova sobre a capacidade pedagógica.
O concurso para professor associado é documental – e a pedagogia é “aferida” por um relatório de uma disciplina. O relatório é, naturalmente, escrito. Como entre o dizer que se faz e o fazer há uma razoável distância, permitam-me que diga a pedagogia também está largamente ausente.
Há depois um acto (solene) onde aparentemente o professor pode de algum modo mostrar o que vale pedagogicamente, a agregação. Digo aparentemente, porque a lição é um simulacro, sem alunos, dirigida a um júri, com rigoroso tempo limitado, com um plano prévio… De tal sorte que a maior parte dos candidatos lê (!) a lição… E é esta prova que habilita a mais um concurso documental, no qual a peça chave é um curriculum-vitae que tem de ser apreciado, uma vez mais, sobretudo por critérios nos quais a pedagogia está ausente.
Esta é a realidade da qual pouco se pode fugir porque o que está legislado não o permite.
Na minha Universidade desde há bastante tempo existe a avaliação do docente pelos alunos. No final de cada semestre o aluno preenche um questionário em cada par docente/disciplina. As questões incidem sobre diversas facetas da actividade docente com relevo para as pedagógicas. Depois de alguns anos em que os resultados dessa avaliação eram apenas do conhecimento do Reitor (que organizava ele próprio todos os processos!) e do docente avaliado, hoje eles são enviados para o presidente da Escola/Instituto e ainda para o Director do Curso. Claro que nada há na lei que permita entrar em linha de conta com essa apreciação.
Devo dizer que estou de acordo com a avaliação dos docentes pelos alunos. Creio que de uma maneira geral eles são muito capazes e honestos nos seus juízos. Os desvios que possam existir constituirão uma franja pouco significativa. De qualquer forma, nem esse método pode ser único nem deve ser endeusado, devendo ter-se o maior cuidado com o questionário, que deve ser variado e de leitura linear.
Avaliação da prática pedagógica ao vivo, não acontece. Provavelmente seria interessante que acontecesse. Eu daria uma aula real, com alunos reais, e seria observado pelos meus pares (por exemplo do grupo disciplinar). Depois far-se-ia a análise da aula, debatendo as opções estratégicas que tomara… Se o leitor neste momento se riu, ou apenas sorriu, ou franziu a testa – provavelmente está certo: estou a devanear. Como antes de ser professor na Universidade fiz, in illo tempore, o estágio pedagógico para o ensino liceal, tive uma larga experiência de ser observado e discutir com os meus metodólogos por que escolhera este caminho e não aquele. Por isso não me espanta. Mas na Universidade?
É por tudo isto que a avaliação dos docentes universitários tem pouco a ver com a pedagogia e muito com a produção científica (que há bem pouco tempo mereceu algumas considerações curiosas em alguns blogs que frequento).
Mas atenção, que ela não pode ser esquecida. Espera-se que um universitário contribua para a investigação na sua área de conhecimento e deve fazê-lo. É evidente que, como a investigação depende do objecto que se investiga, a produção tem fatalmente de ser diferente de área para área. Contudo, devo reconhecer que a máxima “publish or perish”, que chegou até nós, contém muitos perigos potenciais e, em relação a algumas áreas, a sua consequência é profundamente injusta. Em áreas ligadas às ciências sociais, uma investigação rigorosa é demorada e não permite publicações “a metro”. Por mim falo: posso escrever diariamente para o meu blog, mas para publicar tenho uma bitola completamente diferente em termos de exigência. Tenho sempre um receio (quase pânico) de me repetir, de escrever coisas irrelevantes, de parecer que estou apenas a fazer “crescer” o meu bolo… Por isso me espanto com quem é capaz de publicar uma dúzia de livros em meia dúzia de anos.
Por outro lado, se a carga lectiva for pesada o tempo reservado para a investigação não é muito, sobretudo se houver contactos internacionais (como é recomendável).
Chegado a este ponto, que concluir?
Antes de mais, é preciso que o ECDU seja revisto (está para sê-lo há anos…). O programa eleitoral do PS dava como prioridade essa medida, e mais, relacionava-a – e bem – com Bolonha:
“O elemento mais importante do Processo de Bolonha é a concepção dos cursos superiores na lógica da aquisição de competências. A transição de um sistema de ensino baseado na ideia da transmissão de conhecimentos para um sistema baseado na ideia de aquisição de competências é a questão crítica central, em toda a Europa e com particular expressão em Portugal, dados os altíssimos valores de abandono e insucesso que aqui se verificam. No sentido de favorecer essa transição, a importância da dimensão pedagógica no desempenho docente será reforçada, na revisão do Estatuto da Carreira Docente, e criado um sistema de contratos-programa com as instituições, para a aplicação das medidas pedagógicas necessárias.”
Se for assim, serão dados passos importantes para dignificar a dimensão pedagógica no ensino superior. Até agora, o seu peso tem sido diminuto, para não dizer nulo. Será que iremos ter, na lei, o instrumental que permita alterar esse quadro? Espero que assim seja, sem de modo algum desvirtuar o duplo papel da universidade no binómio ensino-investigação.
12 comentários:
Esta sua entrada poderia ser comentada de muitos pontos de vista, mas darei preferência a um que se prende com a avaliação da qualidade científica através das publicações dos investigadores. Levanta algumas interrogações e dúvidas sobre a pressão para publicar que foi imortalizada na expressão “publish or perish”. Não existe nenhum perigo, julgo, de prejudicar áreas inteiras da ciência e da investigação porque não é possível comparar áreas entre si. Um investigador em Física ou Biologia publicará muito mais do que um seu congénere em Sociologia ou História. Não podem nem devem ser comparados. Por outro lado, não é possível olhar unicamente para o número de publicações e desprezar a sua qualidade. Neste aspecto particular, por exemplo, não é possível ignorar o que se designa por “impact factor”, que traduz a maior ou menor excelência das publicações, especialmente aquelas onde existe um sistema de “peer review” credível ou, por exemplo, o número de citações que um artigo origina. Apesar dos todos os perigos e potenciais perversões da quantificação da avaliação científica julgo que ela é melhor do que o sistema português onde, genericamente, não se cultiva a excelência ao nível da investigação e, muito menos, da prática pedagógica. Veja o que escreveu o Prof. António Costa Pinto a propósito da internacionalização da historiografia portuguesa no seguinteendereço:http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/ . Por fim, é importante salientar que existem muitas outras variáveis que podem e devem ser utilizadas para avaliar a qualidade científica de um investigador que podem e devem ser analisadas (número de projectos financiados, valor do financiamento, projectos que revelam cooperação internacional, etc.).
PJ
Reproduzo ainda as palavras de um professor da Universidade do Minho que, em 2000, publicou um artigo de opinião no jornal Público. O seu autor foi Armando Machado, antigo docente da Universidade de Indiana (EUA). "Muitos dos nossos actuais professores catedráticos publicaram, em média, menos de um artigo científico em menos de dois anos. Se considerarmos que a situação era provavelmente bastante pior antes de 1985 e que, em certas áreas como as ciências sociais, a produtividade científica é muito inferior ao valor acima referido, já de si baixíssimo, não podemos deixar de concluir que há, de facto, razões objectivas para questionar alguns dos júris dos actuais concursos universitários."
Mais à frente escreve: "Talvez seja ingénuo, mas não me parece que a solução destes problemas (…) seja complicado: há simplesmente que alterar o estatuto da carreira docente e desenhar sistemas de promoção baseados no mérito científico de cada professor /investigador. Mais concretamente, há que recompensar os comportamentos que se querem promover, pois, caso contrário, eles extinguem-se."
PJ
Caro Cândido Freitas
concordo com o que escreveu. Gostaria muito que as coisas se passassem como propõe.
Quanto^à investigação, é preciso ter muito cuidado, para não transformar professores universitários que devem em primeiro lugar ser investigadores, em investigadores que se dedicam prioritariamente ao ensino.
São actividades diferentes e difíceis de conciliar.
Completamente de acordo quanto aos tempos da investigação em ciências sociais. Infelizmente essa visão não tem eco no campo das "ciências exactas".
O prometido é devido e hoje - finalmente- escrevi lá no meu cantinho sobre exames. Era para ser só um comentário aqui mas era extenso demais e também já tinha passado a oportunidade. É uma coisa simples, nada de bases científicas nem de recorrer a revistas antigas - as minhas estão no sótão, às molhadas. Quando preciso de alguma, nunca dou com ela... :-(
A PJ
Concordo com a necessidade de se ter em atenção a produção científica sem esquecer a sua qualidade, mas os critérios usados são por vezes um pouco injustos. Mesmo nos EUA isso acontece; por acaso, testemunhei um caso que se passou com um meu professor (da área de "Program Evaluation"), que era muito competente e tinha um tipo de trabalho com os seus estudantes de grande nível e de grande exigência, e que não teve a promoção esperada (que lá era definida pelos seus pares no College) porque lhe faltavam uns tantos artigos publicados... Claro que isso levou-o no ano seguinte a afrouxar a vertente pedagógica e a dedicar-se mais a escrever. Penso que naquele caso a dedicação que ele demonstrava em ajudar os seus estudantes devia ter sido levado em consideração. Quanto ao que se passa entre nós... Para dizer tudo o que penso preciso mais do que uma resposta a um comentário. Fica para deposi...
A Adkalendas
O problema (que já foi discutido há pouco tempo noutro blog)é se devem existir professores só professores ou professores que investiguem. Sou francamente pela segunda hipótese; a Universidade nã pode ser uma escola secundária superior...
Saltapocinhas
Já li, já comentei: obrigado. É um bom post! Eu tembém penso que o bom senso é fundamental, será mesmo uma das maiores qualidades que um professor precisa. Só que não o confundo com o senso comum.
Penso que o exemplo que refere quanto ao professor americano que conheceu tem pouco a ver com a qualidade das publicações. O que esse caso ilustra particularmente bem é o peso desigual que, no caso concreto, se dava à produção científica em detrimento do labor pedagógico. A avaliação dos docentes no ensino superior também passa por determinar muito claramente quais as dimensões que concorrem para a avaliação e o respectivo valor. Só depois desses parâmetros terem sido quantificados com rigor é que é possível a cada docente realizar os seus investimentos em função das prioridades que mais valoriza.
PJ
Penso que o exemplo que refere quanto ao professor americano que conheceu tem pouco a ver com a qualidade das publicações. O que esse caso ilustra particularmente bem é o peso desigual que, no caso concreto, se dava à produção científica em detrimento do labor pedagógico. A avaliação dos docentes no ensino superior também passa por determinar muito claramente quais as dimensões que concorrem para a avaliação e o respectivo valor. Só depois desses parâmetros terem sido quantificados com rigor é que é possível a cada docente realizar os seus investimentos em função das prioridades que mais valoriza.
PJ
Eu não me estava a referir especificamente à qualidade das publicações, esse é um dos aspectos que talvez um dia venha a abordar. Porque o "publica ou morres" afecta (pode afectar)grandemente a qualidade. E isso não é específico nosso. Quantas vezes, ao pesquisar bibliografia, encontro o mesmo artigo, disfarçado com retoques, em três revistas diferentes, ou "proceedings" de conferências congéneres? Eu penso que está por definir o melhor meio de avaliar a produção científica, sobretudo na área das ciências sociais, e menos ainda o de conciliar as vertentes pedagógica e científica dos docentes universitários.
VF
O seu comentário ao Adkalendas suscitou este comentário:
Não coloca a hipótese [meramente académica] da transformação da escola básica e secundária num espaço de investigação. Seria um absurdo admitir uma nova funcionalidade para os professores [repare que não vislumbro um espaço temporal] do básico e secundário?
Miguel
Em certo sentido, todas as escolas são espaço de investigação. O problema é saber até que ponto é que qualquer professor pode (no sentido duplo de poder e dever) fazer investigação. Como sabe existem muito adeptos da chamada investigação-acção, que está de novo na moda (em rigor, ela nasceu em meados do século passado e foi posta de parte anos depois). Pessoalmente tenho muitas reservas a esse tipo de investigação, que é mais um tipo de intervenção sócio-educativa do que investigação. É difícil para quem tem de gerir a aprendizagem dos seus alunos aplicar com rigor as exigências de uma qualquer investigação, qualitativa ou quantitativa. Todavia, muitas teses de mestrado e doutoramento têm tido como objecto o que se passa em salas de aula. Se o investigador é exterior à sala, não ponho objecções.
Concordo com o que diz, Varela. A chave está em "Avaliação da prática pedagógica ao vivo", uma avaliação de acordo com a técnica de micro-ensino chamada "autoscopia" com uma comissão externa totalmente descomprometida com a instituição e composta por docentes com formação em Ciências da Educação e uma boa experiência de ensino no grau que estão a avaliar. Claro, isto para a componente pedagógica. Para a científica há critérios mais rigorosos e explicitos. Há ainda outra, a componente instituicional que também pode e deve ser avaliada e que diz respeito ao envolvimento do docente na instituição (tidas as necessárias especificidades de cada docente e a natureza do seu vínculo) de que se fala menos.
Voltarei a falar disto com mais profundidade e eventualmente num post...
Paulo Lopes:
Sobre este assunto, fiz hojew um comentário no Professorices que reproduzo aqui:
Entro tarde na discussão porque neste fim de semana estive a ver os portfolios dos meus alunos. Também por isso não respondi ao Paulo Lopes, que num comentário à minha entrada referiu a autoscopia. Ora bem, há uns trinta e tal anos a autoscopia estava muito na moda, amarrada ao micro-ensino. Se não me engano, autoscopia significa "observação pelo próprio", e era uma parte relevante da técnica de micro-ensino (usada na formação inicial de professores). O professor dava uma micro-aula (10 minutos no máximo)a uma micro-turma (10 alunos)que era gravada em video. Depois ele (ou ela!) observava a sua "performance" e ajudado pelo seu orientador perceberia onde tinha estado menos bem (ou muito bem!). Eu penso que nesta fase a ideia era menos avaliar e mais ajudar o aluno-professor. É curioso que no começo da minha vida universitária, aqui no Minho, na então Unidade de Ciências da Educação, tivemos um sistema de micro-ensino a funcionar. Tinha decerto algumas vantagens mas muitas desvantagens (no fundo, os seus pressupostos eram demasiadamente behavioristas; a formação de um professor não pode esquecer componentes que não são compatíveis com a situação de estar a ser "gravado"). Era, além disso, um desperdício de tempo e de dinheiro. Obviamente que é possível gravar uma aula ou uma série de aulas e uma comissão avaliar o que viu. Com ou sem o professor ao lado. Muitos docentes teriam muita dificuldade em sujeitar-se e não só por receio de ser avaliados mas porque a simples introduçao de uma (ou mais) câmara de video pode efectivamente transtornar a pessoa que é filmada. Bom, certamente voltarei ao tema.
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