The past is malleable and flexible, changing as our recollection interprets and re-explains what has happened.... Peter Berger
2012/07/08
UM NÃO ASSUNTO
Reajo alguns dias depois de esta curta afirmação ter sido proferida. Não precisei de tempo para saber o que tinha de escrever, mas para confirmar alguns pontos que ainda me ofereciam dúvidas. Hoje, está tudo esclarecido.
Para mim, é perfeitamente irrelevante que tenha sido o ministro Miguel Relvas o protagonista deste episódio. Suponhamos que a notícia dizia que, investigado o Sr. Dr. Zé Ninguém (sem ofensa, uso-o como nos Estados Unidos se usa o John Doe), verificou-se que, em 1984, ele se havia inscrito como aluno de uma Faculdade de Direito de uma instituição privada, tendo concluído uma única cadeira do 1º ano com a nota de 10 valores (obtida em oral). Anos mais tarde, mudara de curso, inscrevendo-se no de História, ainda numa escola privada: inscreveu-se, mas não concluiu nenhuma cadeira. Vários anos mais tarde, volta a mudar de curso: desta vez é seduzido pelo curso de Ciência Política e Relações Internacionais, mais uma vez numa instituição privada. Estamos em 2006. A instituição, certamente a solicitação do aluno, faz a apreciação do seu currículo académico e profissional para creditação do que nele for relevante, de acordo com o disposto no artº 45º do decreto-lei nº 74/2006, de 24 de Março (este artigo foi levemente modificado pelo decreto-lei nº 107/2008, de 25 de Junho, mas para este caso isso não conta porque a data é posterior à decisão). Dessa apreciação resultou uma decisão: conceder equivalência a trinta e duas UC (unidades curriculares) e obrigar o aluno a realizar quatro; ou seja, em termos de créditos, o Dr. Zé Ninguém teve o bónus de 160 e terá tido de trabalhar para obter os 20 restantes.
Perante estes dados, o leitor mais desprevenido da notícia perguntaria: isto é possível? E a resposta é: é! A lei permite-o (por isso a citei). Mas são possíveis outras perguntas. Terá sido creditada alguma formação obtida em cursos de “estabelecimentos de ensino superior nacionais ou estrangeiros” (alínea a) do Artº 45º)? Eventualmente, aquele obtida na Faculdade de Direito, na tal disciplina classificada com 10 valores, pois é a única que existe no curriculum-vitae do candidato. Terá sido creditada alguma formação especializada (alínea b), mesmo artigo)? Não se sabe. Finalmente, terá sido reconhecida a experiência profissional e a formação pós-secundária (alínea c), mesmo artigo)? Muito provavelmente sim, porque apesar do nome, o Zé Ninguém terá tido alguma visibilidade, na política, terá estado lugares de destaque em algumas empresas…
Ora bem, isto é absurdo. Se o Zé Ninguém, antes de ser Dr., atirou o barro à parede, como se costuma dizer, para ver se pegava, não merece censura. Mas a parede que aceitou que o barro pegasse, essa sim, denota erros de construção graves. Ou seja: eu não culpo o aluno, culpo a Universidade (Conselho Científico) que não teve pudor em fazer o que fez. Sobretudo quando leio que há quase uma centena de casos idênticos! Que desprestígio para a instituição universitária!
Eu não estou de acordo com os que querem culpabilizar Bolonha: é verdade que Bolonha está a ser uma má experiência, mas não por causa dos seus princípios e sim da sua aplicação desconforme. A creditação de competências e/ou conhecimentos adquiridos fora da academia tem todo o sentido – mas tem de ser feita com ponderação e tendo em conta as exigências científicas que a atribuição de um diploma supõe. Como diria um saudoso professor de Matemática dos meus tempos do Liceu Passos Manuel, o Dr. Nicodemos Pereira, “como isto está barato!” (sempre que um aluno com boas notas mostrava ignorância na matéria). Transpondo para este caso: uma licenciatura tem de valer uma licenciatura.
Por isso, senhor Primeiro Ministro, o que foi divulgado a propósito do seu ministro Miguel Relvas não é “um não assunto”. Pode não o considerar em termos de má imagem para o governo (e creio que está enganado), mas tem de o considerar como responsável pelo país. Quanto mais não seja depois de ter várias vezes afirmado que, com as novas oportunidades, se estava a certificar a ignorância. Não quero misturar as coisas, mas olhe que é de pensar em alguma analogia…
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