2005/08/03

Recuperar partes do passado


Primeira página do dossier...

Aproveito os primeiros dias de férias – entenda-se, dias em que me dispensei de ir regularmente à Universidade, quase certo que nenhum assunto urgente caia na minha secretária – e resolvo dar uma volta aos meus “papéis”, que persistem em amontoar-se. Vou um pouco mais longe do que arrumar papéis, diga-se: há zonas de estantes e armários, caixas que não toco há muito. O que terei eu guardado nesta? Que desleixo não ter um letreiro…

E dela salta um dossier (perdão: dossié é palavra que nunca escreverei!) do tamanho de um caderno diário dos meus tempos de aluno, formato 22x15, capa de cartão hidráulico castanha. Reconheço-o imediatamente. Sei o que contém. Viajo até aos meus 17 anos. Estou em férias, entre o meu 6º e 7º ano do Liceu (actuais 10º-11º). Uma colega, mesmo ao findar do ano lectivo, emprestara-me um livro “mais ou menos proibido”, Príncipes Élementaires de Philosophie, de Georges Politzer. Quando comecei a lê-lo achei-o de uma grande clareza, e decidi… traduzi-lo! E se bem o pensei, melhor o fiz. Como era hábito, devo ter tido férias em Agosto, indo com os meus pais e irmãos ou para Runa ou para Sesimbra (aqui, a memória falha…), mas em Setembro (que ao tempo era um mês inteirinho de férias para os estudantes) estava em Lisboa. E entre os dias 2 e 19 (é o que consta no dossier, ver acima) traduzi, escrevendo em folhas soltas de caderno diário, todo o livro. Lembro-me que grande parte do trabalho foi feito no Café Monte Carlo, ao Saldanha – já não existe – para onde ia depois do almoço, e onde me deixavam estar quase toda a tarde a escrever a troco da “bica” que tomava. Pergunto-me hoje se terei alguma vez tido consciência que poderia ter eventualmente corrido algum perigo se olhar indiscreto percebesse o que eu estava a fazer, uma vez que em 1953 traduzir um autor comunista não seria o mais aconselhável. Creio que não tive essa consciência.
Ao folhear as 312 páginas escritas quando eu tinha 17 anos, não posso deixar de ter um sentimento estranho de recuperar um tempo de juventude que foi determinante para a minha formação pessoal.

A minha tradução andou depois por várias mãos, e contém algumas anotações de colegas que a leram. Depois… tem repousado, a constituir-se quase como uma relíquia (perdoe-se-me o exagero) do meu passado. Deve por isso constar da minha Memória.

Nota: Por curiosidade, fui ver à Net. O livro de Politzer existe para download aqui.

4 comentários:

Anónimo disse...

Runa, perto do Livramento, ali para os lados (grosso modo) de Torres Vedras?... Runa, onde existia, creio que por tradição, a prática de uma modalidade atlética (Luta Livre, creio)?... É desta Runa que fala?...

Cândido M. Varela de Freitas disse...

Essa mesma! Não era proprimente em Runa, mas num lugar perto, chamado Penedo, com uma vista deslumbrante, bom ar e muito sossego. Recordo-me que meus pais viram o anúncio num jornal no qual se dava conta de que se alugava um rés-do-cháo de uma moradia; fomos ver, gostámos, e passámos lá o mês de Agosto. Conferi: foi mesmo em 1953...

saltapocinhas disse...

Eu ainda não tinha nascido quando fizeste essa "perigosa" tradução! Se fosses preso não teria podido ir visitar-te à cadeia (credo, agora lembrei-me da cadeia de Peniche e até me arrepiei...)
Alguns anos mais tarde eu coleccionava citações em pequenos blocos floridos!

saltapocinhas disse...

E tenho esse livro, mas acho que nunca o li :-(
Tinha aí uns 15 anos quando o comprei! Deve estar lá no sótão...