A propósito do meu post de ontem (Preocupações) um amigo da blogosfera manifestou interesse em que elaborasse mais sobre o que penso a propósito de exames. Como há tempos o Correio da Educação (da ASA) publicou uma pequena nota que por ele me foi solicitada, quando o então Ministro David Justino decidiu que iam existir exames no final do 6ºano, transcrevo-a aqui, uma vez que não está disponível on-line (como o aperto de tempo em que estou nesta semana, é o modo mais expedito de dar alguma resposta ao pedido).
AVALIAÇÃO E EXAMES
Ao pôr como hipótese a reintrodução de exames nacionais no final do 6º ano de escolaridade, e “ameaçando” fazer o mesmo para o 4º ano, o Ministro da Educação David Justino deu azo a que se iniciasse mais uma polémica, cujos contornos se adivinham. Vai ter aplausos dos que constantemente criticam os “especialistas” das ciências da educação, a quem atribuem todas as culpas pelas mudanças que têm existido na educação e que (no seu entender) têm produzido gerações de ignorantes, e vai ser criticado por quem discorda, com base em dados da investigação, do valor desses exames.
Aliás, o ministro David Justino, em entrevista à revista Visão (nº 505, de Novembro de 2002), foi claro ao declarar: “Muitas das minhas políticas têm mais a ver com bom senso, com senso comum, do que com uma estrutura sólida de informação, que as permita sustentar”. Na altura fiquei estupefacto com tal declaração, mas ainda me interroguei sobre se o Ministro pretenderia igualar bom senso a senso comum. Com este novo discurso acerca dos exames no final dos ciclos do ensino básico deixei de ter dúvidas. O ministro da Educação acredita que são uma e a mesma coisa, e por isso anuncia tranquilamente uma medida que o senso comum pode aplaudir mas que o bom senso recusa. Isto para não falar dos dados da investigação que, desde há muito, têm condenado alguns aspectos dos exames tal como têm sido geridos em vários sistemas educativos.
Penso, no entanto, que em vez de polémica, os que têm estudado e investigado em educação (pouco importa se devem ou não ser rotulados de “especialistas”…) devem procurar introduzir no inevitável debate sobre este tema dos exames alguma serenidade. Serenidade na análise da proposta e na desmontagem de mitos.
Em primeiro lugar, convenhamos que qualquer processo educativo tem de ser avaliado em todas as suas vertentes. A avaliação dos alunos é uma dessas vertentes e portanto não pode estar em causa. Qualquer professor sabe que é seu dever promover uma avaliação séria das diversas aquisições dos alunos ao longo da sua escolaridade.
Como a escola básica é obrigatória, o Estado assume o compromisso de proporcionar a todas as crianças uma educação bem sucedida (porque mesmo para quem tenha débitos físicos ou intelectuais, esse compromisso existe). Este aspecto exige uma monitorização cuidada por parte dos professores, que têm de avaliar o progresso das aprendizagens, ajudando o aluno a superar as suas dificuldades se elas existirem. Isto implica uma certa individualização do processo educativo no seio do grupo turma, com respeito pelos tipos de aprendizagem de cada aluno.
Nos primeiros anos de escolaridade há pois que admitir que qualquer critério que pretenda avaliar simultaneamente todos os alunos é de desaconselhar porque ele irá, fatalmente, produzir resultados que, podendo estar “matematicamente”certos, não correspondem à realidade.
Os exames – seja na sua versão tradicional seja em versões melhoradas, que as há – correspondem precisamente a um sistema de avaliação que procura na simultaneidade da sua realização tirar conclusões sobre todos os alunos. Que conclusões? Genericamente, sobre o que sabem; em casos mais favoráveis, em que aspectos são competentes.
Acontece que neste momento a orientação que prevalece nos currículos do ensino básico tem linhas claras apontando para a flexibilização, e a escola inclusiva a que aderimos não pode suportar a uniformidade. Cada vez se tornará mais difícil ter, nos primeiros anos de escolaridade, alunos alinhadinhos no aprender.
Assim sendo, qual o valor de exames nestas idades?
Nenhum. Enquanto as provas de aferição (tal como foram pensadas inicialmente) tinham o mérito de informar os professores da situação dos seus alunos, podendo dar pistas para reestruturar o seu ensino, sem causar dano aos alunos, qualquer tipo de exames vai desequilibrar o sistema.
Se eles passassem a existir, a maior parte dos professores passaria a “ensinar para os exames”, insistindo em provas modelo, em repetições de conceitos memorizados, e tal representaria um empobrecimento do processo educativo.
Honestamente, alguém que pretendesse reintroduzir exames no 6º ou no 4º ano teria de tomar uma decisão prévia: alterar as orientações curriculares e mesmo regressar ao sistema de livro único, para ter ao menos uma base para errar menos.
Estes exames, além disso, para além de um regresso a uma escola da qual ninguém pode ter saudades, castradora da criatividade e da própria inteligência, teriam como maior efeito, e digo-o sem grande receio de errar, enormes percentagens de insucesso com as quais o próprio Ministério da Educação conviveria mal…
Neste momento da análise, pode surgir uma pergunta: sendo esse o quadro, não será preocupante que o sistema ignore que há alunos que progridem sem bases? Porque é verdade que há alunos que passam de ciclo sem terem adquirido todas as competências para tal.
Com certeza que isto é preocupante, mas não se espere que a introdução de exames melhore o panorama. O que é necessário é criar condições para que os professores consigam melhores resultados adoptando estratégias mais consequentes com o que tem de ser um ensino individualizado no seio de grupos, beneficiando de apoios se forem necessários, e sendo estimulados para cumprir bem a sua profissão. O que obviamente não acontece quando o exame aparece como uma solução educativa.
Dito isto, vamos então abolir os exames? Para alunos de educação básica, obrigatória, eles não devem de facto existir como meio de definir a continuidade desses alunos nas escolas. Mas aceito-os quando o problema da selecção – palavra que não me repugna nem repugnará, creio, a quem queira ser isento – se puser. No sistema ainda em vigor, a entrada no ensino secundário no 10º ano seria um desses momentos.
Esta opinião é criticável, mas tem base de sustentação. Se ao fim de 9 anos de escolaridade, sejam quais forem as razões, um aluno não domina as linguagens necessárias para prosseguir estudos que, nesta altura, são mais exigentes, é quase certo que não conseguirá ultrapassar as suas dificuldades; então, ou se verifica que terá de ter um suplemento de actividades que colmatem as lacunas ou terá de repensar, ele ou os responsáveis pela sua educação, qual o melhor meio de continuar a sua formação. Neste lanço, não me preocupo que exista quem ache que estou demasiadamente preso a concepções de “eficiência social”; ela pode e deve ser contestada em patamares iniciais da vida escolar, tem todo o sentido quando encaramos a entrada do jovem na vida activa.
Esta nota não esgota o muito que há a dizer sobre os exames, mas delimita desde logo alguns aspectos que considero básicos para discussão. Não ignoro que para muitos a ideia do ministro David Justino é bem vinda; como não ignoro que para muitos outros a oposição a essa ideia tem raízes menos nobres do que aquelas que expus. É dever da comunidade científica da educação participar nesta análise, com seriedade e argumentos. Pela minha parte estou disposto a fazê-lo.
14 comentários:
Varela de Freitas aceita os exames quando o problema da selecção social se puser. “Se eles passassem a existir, a maior parte dos professores passaria a «ensinar para os exames»[…]”.
Admitamos a inevitabilidade da selecção social. A administração educativa já utiliza meios mais ou menos refinados para promover a selecção social dos alunos do ensino secundário, nomeadamente, através da introdução de critérios objectivos para a constituição das turmas. A selecção dos alunos para os cursos orientados para o prosseguimento de estudos difere dos cursos tecnológicos e a preferência dada aos alunos com uma “folha limpa” de negativas às disciplinas de Matemática e Física para os cursos científico-naturais é um bom exemplo da mão centralizadora do Estado. [Nunca percebi porque é que as pessoas se deixam surpreender com os resultados académicos mais fracos dos alunos dos cursos tecnológicos]
Se os exames actuam de forma perversa nas práticas educativas [como foi reconhecido] porque é que continuamos a insistir neste instrumento “débil” de selecção social?
[vou colocar este comentário no meu blogue e um link para este texto]
Gostava de poder dar enfase á polémica acerca dos especialistas das Ciências da educação e chamar a atenção que álgumas dessas correntes ainda não podem ser chamadas de culpadas da formação de ignorantes pelo simples facto que nunca tiveram poder....
Não li! Já passa da 1 da manhã, as letras são muito pequeninas, e amanhã às 9 da madrugada tenho formação a matemática... Mas a 1ª coisa que fizer amanhã quando ligar esta maquineta é vir aqui ler. O tema interessa-me muito pois nem sequer sei qual é a minha opinião!
Se os exames não dependem do senso comum ou do bom senso então dependem de quê?
PJ
Se os exames não dependem do senso comum ou do bom senso dependem então de quê?
PJ
Se os exames não resultam do senso comum ou do bom senso resultam então de quê?
PJ
A Miguel Pinto
Uma precisão: eu não aceito os exames como forma de selecção social, apenas compreendo que, salvaguardada a igualdade de oportunidades que uma escola democrática deve favorecer, apenas os que mostrem estar aptos para prosseguir estudos o deverão fazer. Não será uma selecção social mas uma selecção com base em competências demonstradas. Como disse no texto, penso que na educação básica os exames para “eliminar” não fazem sentido (mas uma avaliação séria é indispensável). Depois, posso não acreditar na justiça de muitos exames, mas compreendo que alguma forma de distinção de capacidades tem de ser feita. Há hoje formas alternativas dos exames que têm provado consistência – mas são regra geral mais morosas e não podem “hierarquizar” os alunos. Por isso tenho sempre tido uma certa prudência em não condenar liminarmente os exames pós-educação básica.
A David Justino
Os blogs são, de facto, um meio extraordinário e fascinante neste nosso tempo tecnológico! O diálogo que foi impossível (compreensivelmente) quando um era Ministro e o outro professor da uma Universidade que até tinha um protocolo de acordo com o Ministério com a finalidade de dar apoio a escolas da região, consegue concretizar-se agora. Concordo consigo quanto ao valor do bom senso – decerto é uma qualidade de um qualquer professor – mas não o anteponho a verdades cientificamente comprovadas. Quanto aos exames e ao seu valor, talvez regresse ao tema, mas creio que o meu pensamento é claro. Continuarei a de vez em quando passar pelo seu (vosso) blog, e continuaremos, porventura, a dialogar, agora que somos apenas académicos, com as diferenças naturais decorrentes da formação e até do facto de o DJ ser um político e eu ter deixado a política activa há muito, muito tempo…
A um anónimo
Sabe, a palavra “especialista” nunca me agradou muito. Eu não sei se sou ou não “especialista”, sei, apenas, que como estudioso de uma ou duas áreas importantes para a educação posso distinguir com mais facilidade do que um desconhecedor pontos fortes ou fracos numa argumentação, num projecto. A que tipo de poder se refere? Poder político? Na educação, meu caro, o verdadeiro poder (para bem e para mal) está nas mãos dos professores (tenho a sensação que isto vai dar muita luta…)
Saltapocinhas
Obrigado por mesmo à uma da manhã vaguares pela Memória Flutuante… Espero pela contribuição (e parabéns por estares a fazer formação em matemática: para que não digam que os professores do 1º ciclo esquecem as disciplinas…)
PJ
DJ dirá, se quiser: para mim, os exames dependem, apenas, da necessidade de hierarquizar, catalogar, separar (e outros verbos análogos) com uma finalidade determinada (por exemplo, o prosseguimento de estudos superiores). Repito o que disse atrás: nunca deverão ser um meio de selecção social; aceito que sejam um meio de selecção de competências.
"aceito que [os exames] sejam um meio de selecção de competências."
VarelaF
A sua colega Carlinda Leite define competência com um saber fazer em acção.
Aceitando como válida esta definição, não considera o exame um instrumento de avaliação débil?
Digo: A sua colega Carlinda Leite define competência como um saber fazer em acção.
A Miguel
Creio que deuxei mais ou menos claro que embora aceite os exames não deixo de lhes reconhecer debilidades. Mas alguma forma de avaliação tem de existir!
A José Gil
Se os exames tivessem como fim a sewlecção social seria liminarmente contra. A minha aceitação (não no fim do básico, mas no secundário) deriva do facto de os considerar como meios de avaliação de competências adquiridas.
A Miguel
Creio que deixei mais ou menos claro que embora aceite os exames não deixo de lhes reconhecer debilidades. Mas alguma forma de avaliação tem de existir!
A José Gil
Se os exames tivessem como fim a selecção social seria liminarmente contra. A minha aceitação (não no fim do básico, mas no secundário) deriva do facto de os considerar como meios de avaliação de competências adquiridas.
(Repetem-se para eliminar os erros de tecla)
Cheguei um bocado tarde a esta discussão, mas gostaria de fazer umas observações.
Há uma componente lateral dos exames que é importante para os alunos em termos futuros: o habituar-se a eles. Deve ser bastante traumático passar anos sem exames e, de repente, ser-se confrontado com um sem saber muito bem como proceder. Destaco que não estou a defender exames selectivos, apenas a existência de exames como tal a intervalos regulares.
Também relativamente aos exames, não vejo mal nenhum que estes sejam feitos, selectivos ou não, para avaliar a aquisição de competências solidamente estabelecidas. A questão da importância dos exames pode ser resolvida com uma simples pesagem da informação final dos mesmos em relação a outras fontes de avaliação.
Uma coisa que sempre me intrigou no processo educativo foi a quantidade de informação que a escola, do básico ao secundário, reune sobre cada aluno e que parece não se reflectir na avaliação final ou na orientação da carreira futura.
Desde já declaro que não tenho uma posição dogmática sobre a matéria, sendo até por isso mesmo que frequento aquilo a que gosto de chamar a blogoESfera (de ES - Ensino Superior) e a indentifico como um tipo de universidade virtual, onde se aprende muito.
Também tenho muitas reticências em usar o termo "especialista" quando nos referios à educação, Varela. Em primeiro lugar o termo educação não remete para um campo epistemológico (já ouvi falar de "educólogos".. o que é isso?!), e em segundo a área é demasiado complexa para poder ser analisável por uma só "especialidade".
"Pedagogia" já é outra coisa mas também hesito...
Não é discipendo dizer "especialista em sociologia" e "especialista em fenómenos sociais"...
Há quem fale em "Cientistas da Educação" o que ainda carece de explicações mais profundas. Mal menor parece-me, embora alguns reputem que pode ser ultrapassado, é "pedagogo"... ou "professor na área da educação" e/ou "ciências da educação".
Mas temos necessariamente que colocar um rótulo na coisa?
A MJMatos
Na verdade este tema é aliciante. Contudo, nesta pequena amostra (que inclui um ex-Ministro) parece claro que há um ponto comum: todos repudiamos os exames como processo de selecção social.
Quanto à sua reflexão, estou inteiramente de acordo com ela. Por mais que se apontem as vantagens de uma avaliação englobante, ou seja, na qual se considerem dados objectivos (provas) e subjectivos (informações ao longo do tempo escolar, derivadas da observação) há uma tendência de muitos professores para fazer “as contas”, do tipo: se há três provas com 10, 12, 15, então 10+12+15/37=12,3, logo 12. (Isto quando as classificações são na escala de 0 a 20; no ensino básico há maior fluidez mas mesmo assim…)
A Paulo Lopes
Em rigor, penso que não são necessários rótulos. Para mim, classifico-me, com muita honra, como professor – e se for necessário, na área de educação. Como deixei escrito atrás, há ciências da educação, algumas bem identificadas (história, psicologia, sociologia). Outras áreas não me atrevo a considerá-las assim, como aquelas a que pertenço, currículo, avaliação, tecnologia. Mas por outro lado, há uma certa necessidade de identificar uma comunidade que tem como cimento o seu interesse e trabalho na área de educação, e por isso não me repugna a expressão “ciências da educação”.
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