2005/04/25

O meu 25 de Abril


O meu 25 de Abril começou a 24. Por uma rede de associações, evocar o 25 de Abril traz-me à memória, coladinha, a noite da véspera. Eu trabalhava então na Direcção-Geral do Ensino Secundário, como chefe da divisão de Programas e Métodos (na altura, a palavra currículo não tinha ainda ganho cidadania neste país), e costumava sair tarde, mas às quartas-feiras eu tinha logo às 21 horas um compromisso (dava aulas na Escola Superior de Organização Científica do Trabalho, no ISLA, na Rua do Sacramento à Lapa) e por isso fiquei algum tempo mais no gabinete. Jantei, como quase sempre, no pequeno restaurante da Escola, ouvi ainda comentar o jogo que o Sporting fizera nessa noite na Alemanha de Leste para uma das competições europeias (uma vaga ideia de ter perdido 2-1) e depois “dei” a minha aula. Era uma aula de 3 horas, por isso só pela meia-noite regressei a casa. No momento não chovia, mas as ruas estavam molhadas de chuva recente. O percurso entre a Lapa e a Avenida de Berna, a essa hora da noite, era rápido. Pouco trânsito. Deitei-me. Adormeci e como de costume acordei pelas 7 e 30. Liguei o rádio (ouvia sempre, nessa altura, o programa da manhã da então Emissora Nacional), e… nada. Bom, acontecia por vezes. Por isso desliguei o rádio para não ouvir aquele ruído irritante de rádio ligado sem estação e fui para a casa de banho. Pelas dez para as oito, toca o telefone. Vou atender, surpreso pela hora matutina, e o diálogo surrealista que se segue aconteceu pouco mais ou menos assim.

“Sr. Dr.? Fala a X , Reitora do Liceu de …”
“Bom dia, Srª Reitora.”
“Oh Sr. Dr., eu vinha perguntar se devo abrir o Liceu”.
“Homessa! Abrir o Liceu! (como é óbvio, estava espantadíssimo) Mas porquê?”
“É que dizem que há uma revolução!”
E eu, muito parvo: “Isso deve ser boato!”
E a senhora, convicta: “Não ouviu a rádio? Estão a dizer a todo o momento…“

Rapidamente liguei o silêncio às 7 e 30 a qualquer coisa que poderia estar a acontecer. Creio (mas a memória aqui falha…) que a aconselhei a abrir o Liceu se houvesse alunas fora do edifício, porque sempre estariam mais seguras se houvesse confusão e desliguei. Abri de novo o rádio e a mensagem chegou: “Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas…”

Era, então, verdade. Rapidamente, minha Mulher e eu delineámos a estratégia. Ambos iríamos para os nossos postos de trabalho, mas a filha, nessa altura com 6 anos, não iria ao Colégio e ficaria em casa da porteira, que sempre a acolhia com alegria. Deixei à Mãe o encargo de explicar à filha o que se estava a passar e depois de um pequeno-almoço comido em alvoroço saímos. Havia menos trânsito do que habitualmente. Deixei a minha Mulher na Praça de Londres e rumei à rua Diogo do Couto, perto de Santa Apolónia, onde era a Direcção-geral. Não passei por um militar – nem um polícia. A rádio continuava a transmitir os comunicados. Como eu, muitos tinham ido ao serviço, e vindos de diversas partes de Lisboa contavam o que tinham visto. Um viera pelo Terreiro do Paço e era quem dava as notícias mais inquietantes (havia mais tarde de revelar-se um MRPP surpreendente!).

Adivinhava-se o que estava a acontecer. O 16 de Março fora o sinal, como antes dele o livro do Spínola. Só não se podia com certeza saber o que vinha a seguir… A meio da manhã, o director-geral recebeu ordens para toda a gente ir para casa. Telefonei à minha Mulher e fui buscá-la (podia também sair mais cedo). Antes de almoço estava em casa, ouvindo as notícias que a rádio ia dando. Eu morava (e de algum modo moro, embora neste momento quem lá viva é a minha filha) ao pé de um quartel já desaparecido, o Trem Auto, que foi convertido na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova. Passei a tarde a ouvir rádio e a tentar descobrir sinais vindos do quartel – mas nada… Consegui, na banda de FM, apanhar conversas entre grupos de missão ligados aos revoltados, mas os códigos não me permitiram perceber praticamente nada. Quando pareceu seguro que o sinal da revolução era positivo, que acabara o regime em que eu nascera, senti grande alegria. Pelas seis e pouco saí para comprar os jornais da tarde – eram quatro, ao tempo: Diário Popular, A Capital, Diário de Lisboa e a República. Durante muito tempo depois desse dia memorável, comprei-os sempre todos, como de manhã comprava O Século e o Diário de Notícias. Não fazia ideia o que viria a seguir, mas sentia-me feliz. À noitinha, a minha filha, que fora acompanhando como podia aquele dia célebre, perguntava à Mãe, antes de adormecer: “Mamã, e agora quem é que está a governar?” Eu, ouvindo pela rádio que a televisão ia mostrar a Junta de Salvação Nacional, decidi: tem de ser, temos de comprar televisão, porque agora vale a pena tê-la! Até então resistira à televisão. Não no dia seguinte, porque o comércio esteve praticamente fechado, mas no sábado, comprei a minha primeira televisão, uma Panasonic portátil, bem pequenina, que me custou, na altura, 5 mil escudos (quase metade do meu ordenado do tempo…)! Já pude então ver, em directo, a saída dos presos de Caxias.

O 25 de Abril foi um dia que quase posso recordar por inteiro. Não fazia ideia, na altura, o que se iria passar a seguir, mas nunca pensei que se caminhasse tão depressa rumo a um país diferente. Só no Primeiro de Maio tive a certeza que iriam acontecer coisas importantes e tinha de me preparar para elas. Mas esse 1º de Maio, recordá-lo-ei na altura certa…

5 comentários:

Anónimo disse...

O 25 de Abril de 1974 é um daqueles dias, para quem era vivo nessa altura, em que todos nos lembramos onde estávamos e o que fizemos.

PJ

crack disse...

Apreciei a forma notável como nos deixou partilhar a sua memória, sobretudo por ser esta memória tão factual,estar nela tão entrelaçada a vida familiar e profissional,por ser muito mais do que uma memória opinativa.
Todos nós, que já tinhamos idade suficiente para isso, nos lembramos do que fizemos nesse dia, e nos seguintes.
Recordar ajuda-nos, ainda, a ver com maior clareza.

JorgeMorais disse...

Bem, eu tinha 17 meses... Só sei que estava em Luanda...

saltapocinhas disse...

Eu fiquei toda contente porque não houve aulas e andei na rua todo o dia... Já o 25 de Abril de 75 foi bem mais marcante...

Cândido M. Varela de Freitas disse...

Para todos
É certo: quem já existia nessa data com idade para "perceber" não pode esquecer (mesmo aqueles para quem a data foi funesta não a esquecem por isso). Foram dias de uma exaltação incrível.