2005/12/22

Os lugares onde vivi – (5) Viseu (1961-1963) (continuação)


Quando iniciei esta série tinha em mente conseguir “fotografar” os sítios onde vivi e não pensei que isso seria difícil sem recorrer a muitos dados pessoais, que no fundo implicam profundamente com a maneira como vemos e vivemos no meio em que estamos inseridos. Mas a verdade é que desde o primeiro momento a história da minha vida “colou-se” à descrição do local e acabo por concluir que tem de ser mesmo assim.

Por isso tenho de dizer algo mais em relação à minha estadia em Viseu.

Foi durante esses dois anos que eu ultrapassei a minha condição de professor “que queria ser professor” para me tornar no professor entusiasmado pela educação, empenhado em saber mais e em experimentar soluções para que os alunos tivessem êxito. Foi, também, o tempo em que percebi que tinha de lutar porque o meu campo de acção poderia estar minado, como aconteceu em Viseu, se não me conformasse com o estabelecido – e isso eu sabia que iria acontecer mais algumas vezes.

Como já disse, eu tinha de estudar muito porque embora não partisse do zero, a formação que tinha em educação era frouxa. Na Faculdade de Letras fizera, como toda a gente praticamente fazia, o curso de “ciências pedagógicas”, ouvira com admiração Delfim Santos (mas Delfim era um filósofo, gostávamos de o ouvir, mas era cedo para pôr a render a sua filosofia), mas verdade seja não tivera grandes exemplos de boa pedagogia… Fiel à ideia de que só eu era responsável pelo que aprendia, estudei. A disciplina que ia ensinar intitulava-se Psicologia Aplicada à Educação e tinha um “programa” muito aproximado à psicologia do Liceu, ainda tributária da psicologia das faculdades. Tive pois, antes de mais, de ajustar o meu estudo a esse programa. Comecei a conhecer autores dos quais só sabia, muitas vezes, o nome. Para além dos livros que me haviam sido indicados descobri outros, e familiarizei-me com o pensamento dos seus autores.
Tinha quatro turmas de cerca de 50 alunos cada. As minhas aulas eram assim testadas sucessivamente por quatro plateias. Eram alunos que teoricamente tinham acabado de completar o curso geral dos Liceus, portanto a maior parte muito nova. Eu saía generosamente fora das rubricas do programa, procurando ampliar a visão do mundo daquela juventude. Procurava ao máximo o diálogo, mas não deixava de expor, procurando ser claro, até porque o livro que existia, de um certo Escarameia (era mesmo o nome do autor) me parecia fraco, e eu englobava muitos conceitos e factos que ia colher no que estudara.

Um dia, expus brevemente as teorias evolucionistas, falei de Darwin. O que fui fazer! Pouco tempo depois, o director (com quem aliás me dei razoavelmente) veio com pezinhos de lã dizer-me que bem, compreendia que eu falasse de muita coisa, mas que tivesse cuidado, Viseu era um meio pequeno e acanhado, etc., etc. Franzi o nariz, quis saber mais, e compreendi que o professor de Moral da Escola, o Cónego Barreiros, fora informado das minhas “simpatias” darwinianas e “avisara” a direcção… E não só! Por pouca sorte, o médico escolar, que dava também Higiene Escolar, era “apenas” amigo de Salazar (Salazar era de Santa Comba Dão, perto de Viseu) e líder da União Nacional local… Chamava-se Armindo Crespo. Já se deveria ter apercebido, nas poucas conversas que havíamos tido, que não era propriamente um amigo do regime, conquanto não tivesse qualquer actividade política; mas um professor que falava de Darwin não se recomendava…

No final do primeiro ano houve, porém, um problema maior. Eu não fora professor do 1º ano e fui encarregado de ver as provas escritas do Exame de Estado de cerca de 150 alunos. Eram provas vindas do Ministério, com cotações estabelecidas, e dediquei-me ao trabalho com a mesma disposição de sempre: ser cumpridor e justo. Ao fim de uma vintena de provas, comecei a ficar preocupado. Algumas delas eram tão más, tão más, que não via hipótese de lhes dar classificação de passagem (a prova era eliminatória). Por mais que quisesse não podia, porque nem sequer era problema de interpretação: eram questões totalmente erradas ou deixadas em branco.

Se não me engano, dezasseis alunos iam ser reprovados. Antecipei tudo menos o que sucedeu. Na reunião, o Dr. Armindo Crespo insurgiu-se, vociferou, disse que “não podia ser, que não ia ficar assim”, e saiu da sala disparado. Tive aí – honra lhe seja feita – o apoio do director, que reconheceu que eu tinha razão.

Mas reprovaram mesmo os dezasseis, o que constituiu um escândalo porque creio que nunca tinha acontecido naquela escola. Não se pense que fiquei contente, e terá começado mesmo aí uma certa viragem do meu pensamento em relação à avaliação, pondo em causa os exames. Simplesmente eu não podia, se eles existiam, não cumprir com o estabelecido. E por isso não alterei as classificações, como no fundo queria o Dr. Crespo.

Todavia, a minha situação tornou-se periclitante. A partir daí sabia que tinha quem não me perdoaria, que me tornara “personna non grata”. Curiosamente os alunos não mudaram a sua atitude para comigo, que foi sempre de simpatia e compreensão. Mas desde essa altura decidi que não me iria eternizar em Viseu e que por muito agradável que fosse ter um lugar efectivo eu tinha de ir fazer o estágio.

Aconteceu que foi alterada a legislação e foi abolido o exame de entrada, substituído por um de saída (já escrevi sobre isso neste blog); o processo de candidatura era apenas formal (por requerimento). Já não me recordo se fiz contas e percebi que entraria, mas o certo é que no fim do meu segundo ano, depois dos exames de Estado dos meus cerca de 200 alunos, pedi a exoneração do cargo e voltei a concorrer para ser professor eventual dos liceus, uma vez que o estágio só começava em Janeiro.

Fui então colocado em Lamego, onde estive de Outubro a Dezembro de 1963.