2005/12/14

Os lugares onde vivi - (1) Seixal (1936-1947)


Nasci na Cova da Piedade apenas porque os meus avós maternos – que cheguei a conhecer, ao contrário dos meus avós paternos – lá viviam. Nessa altura poucas mamãs não tinham os seus filhos em casa… Mas a minha infância foi passada no Seixal, onde a minha família se fixara. Nesses anos 30, o meu pai era contabilista de uma grande firma da indústria corticeira deste país, a Mundet & Cª Ldª, e a minha mãe – como tantas outras mulheres do seu tempo! – teria de inscrever, como profissão, se a tal fosse obrigada, “doméstica”. Eu era o mais novo de três filhos, a oito anos de distância da irmã e a doze do irmão.

Tenho uma ideia global dos tempos da minha infância, com episódios bem marcados e outros nebulosos, até que começo a ter uma memória mais precisa, detalhada. A recordação mais antiga é a de receber uma vacina no consultório do Dr. Fiadeiro, médico que nos finais dos anos 30 do século XX exercia no Seixal. Penso que terá sido uma vacina tardia – teria eu três anos? Lembro-me de estar sentado numa mesa alta, lembro-me do médico a retalhar a minha coxa direita, e sobretudo lembro-me de um cão preto, enorme, que do lado de fora do consultório, observava a cena. Penso que terei tido muito medo do cão e naturalmente da vacina; isto porque ainda hoje não gosto particularmente de me encontrar com cães desconhecidos e também não gosto de ter de me encontrar com médicos...

O calendário real ajuda-me a datar os eventos que recordo: o ciclone de 15 de Fevereiro de 1941 (estava eu portanto a meses dos cinco anos), a morte da minha Avó materna, um ou dois anos depois; um tremor de terra forte, que me apavorou, em data que não posso precisar. Visualizo com nitidez a noite na qual o meu Pai, de acordo com as instruções dadas, colou nas janelas tiras de papel, pôs à porta um balde de areia com uma pá, e apagou todas as luzes: era o “blackout” de prevenção nos tempos da Grande Guerra de 1939-1945. De manhã, foi a surpresa – e disso me recordo com nitidez, também! – ao ver pela janela, sobrevoando o braço do rio Tejo que se avistava de casa, muitos balões de barragem.

Tenho da guerra lembranças esparsas. Quando comecei a saber ler – teria eu uns seis anos, talvez – recordo-me de todas as manhãs ir espreitar o jornal que o meu Pai lia, O Século. Claro que ouvia conversas, mas não sei se cheguei a ter uma consciência clara do que estava a acontecer.

O Seixal era nessa altura uma pequena vila que de desenvolvia precisamente ao longo desse braço do rio. Era uma vila de pescadores e de operários, porque a fábrica da Mundet dava trabalho a muita gente. Havia duas ruas principais e paralelas, a Paiva Coelho e a Dr. Miguel Bombarda, na qual morava, num segundo andar que me permitia ver o rio, o moinho de maré em frente e ao longe, se não havia neblina, os contornos de Lisboa.

Terra de gente modesta e trabalhadora, com parcas diversões. O cinema era um barracão (na altura as crianças podiam ir ao cinema mesmo se fossem de colo), e recordo-me de se ter inaugurado a primeira pastelaria no Seixal – por acaso mesmo ao pé da casa de meus pais. Havia duas sociedades recreativas que eram rivais – se não me engano, tinham os nomes de Timbre Seixalense e União Seixalense. E o Seixal Futebol Clube.

Nesses anos 40 estava-se a electrificar a vila – recordo-me dos trabalhos feitos em casa, dos montes de fios, tomadas e interruptores – tudo montado à vista, claro. Também não havia ainda água canalizada – todos os dias o “aguadeiro” nos visitava para encher os potes na cozinha.

Desses tempos, recordo ainda as grandes festas de S. Pedro, o padroeiro da vila, com as ruas engalanadas, a procissão e as vendedeiras de bolos (sempre fui guloso).

Foi no Seixal que fiz a escola primária, os meus primeiros exames, e foi no Seixal que fiz os primeiros amigos – mas a vida afastou-me de todos eles. Em 1947 o meu pai foi transferido para os escritórios da Mundet em Lisboa, estava eu no 1º ano do Liceu, e a família mudou-se para a capital. Ia iniciar um novo capítulo da minha vida.

2 comentários:

saltapocinhas disse...

Tu és então aquilo a que a minha mãe chama "o menino das bruxas"!! espero pelos próximos episódios, adoro histórias de vidas...

Cândido M. Varela de Freitas disse...

Espero não te desiludir...